Numa pequena aldeia de Antioquia, a cada sete anos a cidade faz uma encenação da via dolorosa de Cristo. Os habitantes são escolhidos de acordo com as características que se assemelham aos personagens históricos. Assim, Maria é uma moça pura, José um trabalhador simples da aldeia. À medida que o romance “O Cristo recrucificado” de NikoKazantizakos evolui, os atores locais vão se mimetizando na personalidade escolhida. Num quase renascimento místico do Cristo e todos que viveram próximos dele. Ao mesmo tempo, os conflitos entre o padre Gregório, inescrupuloso e aliado à elite da cidade, e o padre Photis, preocupado com as questões sociais e próximo às camadas populares, se acirram. A história foi escrita 14 anos da instalação do Conselho Vaticano II. Mas de forma alegórica e contundente narra as contradições entre uma Igreja Católica dita dos pobres, mas que possuía uma clara opção pelos ricos. No período as igrejas europeias esvaziavam, o ateísmo avançava e a América Latina salvava a cristandade. A declaração de John Lennon, de que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo, procedia.
A encruzilhada da cristandade ocidental era manter as tradições, o conservadorismo e o abandono das questões sociais ou voltar seus olhos para a justiça social aqui na Terra.

Giuseppe Roncali, papa João XXIII (1958-1963), há exatos 60 anos convocava o Concilio Vaticano II. Concílios são uma complexa e longa série de reuniões de cardeais, bispos renomados, teólogos com a função de repensar os documentos eclesiásticos essenciais, as constituições canônicas, além de redefinir doutrinas e alicerçar o paradigma religioso dos novos tempos. Recebe o nome da cidade em que foi realizado. O Vaticano I ocorrera 100 anos antes. Talvez o Concilio mais conhecido seja o de Trento, entre 1545 e 1563, que foi responsável pela Contrarreforma, a reação católica contra os protestantes.
Alguns meses após os inícios do trabalho do Vaticano II, o papa faleceu e rapidamente os cardeais escolhem o sucessor, Giovanni Battista, papa Paulo VI (1963-1978). E coube a Paulo VI a tarefa de prosseguir com os trabalhos do Concílio e concluí-lo em 1965. Duas novas constituições ecumênicas foram escritas, diversas interpretações doutrinárias foram revistas. No cerimonial, acabava a obrigação da missa em latim e do padre de costas para as gentes de fé. Não foram decisões unânimes, a arquidiocese do Rio de Janeiro convive até hoje com tradições conservadoras e em algumas paróquias a missa permanece em latim, por exemplo. Mas o principal de tudo foi a orientação preferencial pelos trabalhos sociais e em defesa das minorias.
Foi a partir dessa pequena fresta que alguns anos depois, principalmente na América Latina, nasceu a Teologia da Libertação, cujo grande teólogo brasileiro era o antigo Frei Leonardo Boff. No livro “Teologia da Libertação”, Boff nos explica o que seria aquela nova doutrina. Primeiro vem a ideia de que Jesus Cristo e todos os pregadores têm um duplo compromisso em levar as palavras sagradas às gentes: a questão espiritual da fé em Deus, no esforço em tirar a humanidade do pecado e salvar sua alma; a questão terrena — os padres e a Igreja têm um papel de intervenção no mundo das gentes para reduzir o sofrimento e encaminhar o mundo para a transformação social. Numa passagem, Boff dá como exemplo o milagre dos peixes. Cristo não multiplicou nada, seu grande milagre foi fazer com que todos que estavam à sua volta deixassem de lado o egoísmo e a avareza. Cristo pede e todos entregam tudo que têm pra comer em grandes cestos que ficam abarrotados. Havia comida para todos, mas ela estava concentrada nas mãos de poucos. O milagre era a redivisão dos pães feita por Cristo.

No final dos anos 60 a Teologia da Libertação se espalhou feito centelha num mato seco de ideias. Esteve com os sandinistas na Revolução Nicaraguense de 1979, apoiou Salvador Allende no Chile, conseguiu democratizar o Haiti com Jean Bertrand Aristide, entre outras histórias. No Brasil, a Teologia da Libertação alicerçou as Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Fundamentais na luta pela reforma agrária, pelos direitos das crianças, adolescentes e mulheres, as CEBs foram essenciais nas lutas contra a ditadura, a tortura ou em defesa dos direitos humanos. Seguiam à risca o conselho seiscentista de Padre Antônio Vieira: “uma igreja com mais passos e menos paços”. Foi a Teologia que esteve presente na fundação do PT e depois do MST. Uma igreja que semeava esperança, fé e justiça social.

Morris West escreveu nos anos 60 a história “profética “ de um papa oriundo da Europa Oriental comunista que faria uma revolução na igreja católica. Errou o tipo de transformação. No final dos anos 70, surge uma nova contrarreforma, agora uma reforma vindo como reação ao inimigo interno, a tendência comunista da Teologia da Libertação, segundo os grupos conservadores. Em julho de 1978, Paulo VI morre e assume o jovem e sorridente Albino Lucianni, papa João Paulo. João Paulo assustou o mundo ao falecer 33 dias depois. Francis Ford Copolla e Mario Puzzo aventam a hipótese de assassinato em “O poderoso chefão 3”( 1991). Lucianni queria combater os criminosos do Vaticano. Depois de demoradas reuniões, os cardeais escolhem um papa polonês, Karol Wojtyla. A profecia das Sandálias do Pescador se cumprira. O papa João Paulo II (1978-2005) e seu sucessor Joseph Ratzinger, papa Bento XVI (2005-2013) passaram 35 anos combatendo e ajudando a combater o comunismo e as esquerdas dentro e fora da igreja. Os teólogos da Libertação foram silenciados ou excomungados da igreja. A Teologia virou heresia.
Não é coincidência que os neopentecostais avançaram em seus rebanhos das periferias para os centros a partir dos anos 80. Também não é coincidência o Estado do Rio de Janeiro ser o epicentro das ondas evangélicas. Foi lá que a igreja católica ultra-conservadora impediu o crescimento da Teologia da Libertação. E é o mesmo motivo que explica a simpatia da igreja católica com a Renovação Carismática e sua Teologia bem próxima à da prosperidade.
Tudo isso é fundamental para se entender a virulência das críticas a Jorge Bergoglio, o papa Francisco, primeiro latino-americano a ser eleito em 2013. Francisco respira os ares da mudança e os princípios do Vaticano II. E o porquê do Brasil ser um país em que alguns cristãos seguram a Bíblia numa mão e noutra o frio metal de uma arma de fogo.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem, assinando como Frederico Moriarty e articulista do Portal Porque ( portalporque.com.br), onde originalmente publicou este artigo
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