
JOSÉ CARLOS FINEIS – Este blog nasceu com a proposta de abordar assuntos variados, sem um foco muito definido, com um pé em comportamento, outro em comunicação, outro nas artes e outro em sociedade – ou seja, seria um blog multidisciplinar com no mínimo quatro pés ou patas, assim como uma mesa ou um cavalo.
Quem o acompanha desde o primeiro post (tenho já três leitores confirmados, ou que, pelo menos, tiveram a gentileza de me dar um feedback) deve estranhar a ausência de conexão entre o nome do blog, “Conversa de Armazém”, e o conto – gênero em que finalmente me encontrei, depois de uma longa carreira de autor de romances inacabados.
Eu poderia argumentar: é lá nos armazéns (pelo menos nos armazéns antigos de bairro, que funcionam como pontos de encontro) que os homens mantêm a tradição de tagarelar entre si, contando piadas, vantagens e histórias. Falam de pescarias, de casos amorosos, de porradas que deram em adversários e toda a sorte de aventuras, quase sempre melhoradas pelo poder da pinga e da cerveja sobre a imaginação e a criatividade.
A explicação poderia até soar verossímil, mas não seria verdadeira. O fato é que a proposta do blog mudou rápida e inesperadamente, quando, às vésperas do já histórico (para nós do Terceira Margem) dia 14 de março de 2019, quando lançamos este coletivo, resolvi publicar o conto “Sagan 1” e começar, assim, a realizar um antigo sonho, postergado desde os meus vinte e poucos anos: o de ser um escritor de “coisas minhas”.
Sim, porque escritor tenho sido desde sempre. Mas, pelo menos desde que me tornei um profissional da comunicação, tenho escrito textos para os outros (notícias, críticas, editoriais e até discursos). Em resumo: tornei-me uma “caneta de aluguel”. Só raramente – e ultimamente com mais frequência, depois que meu último emprego me perdeu – é que me permiti subtrair um tempo aos assuntos de trabalho para dedicar aos contos e a outros textos “da minha lavra”, como se diz.
E já que “Conversa de Armazém” acabou se tornando um blog literário, permito-me, só hoje, alterar um pouco seu rumo para, em vez de contos, publicar poesias.
“Dona Vidinha deve andar vendo novela mexicana.
Bebendo escondido, cheirando cocaína, a danada.”
Tornei-me poeta por volta dos 12 anos, mais ou menos, graças aos Beatles, a Carlos Drummond e a uma paixão platônica que eu não podia afogar na cachaça como os adultos, por isso afoguei na poesia. Cheguei a publicar dois cadernos de poemas nos anos 1980 e 90 (“Coquetel Molotov” e “Apenas um risível zepelim gigante” — hoje já tão antigos que costumo brincar terem sido escritos em outra encarnação). Depois desse começo promissor — só não sei o que prometia –, minha produção se rarefez, até porque havia muito trabalho a fazer, um amor a viver, filhos a criar e contas a pagar.
Fiquei sendo, assim, um poeta bissexto, mas, de toda forma, poeta – e o fato de ter me dedicado menos a essa forma incrivelmente sofisticada de literatura em nada diminuiu meu amor e minha devoção pela poesia, desde que feita a partir de um esforço sincero, dedicado, diria até obcecado, de cérebro e coração trabalhando juntos, em busca de fórmulas perfeitas que reúnam doses generosas tanto de inventividade quanto de beleza e sentimento.
Não acho que o consegui — digo apenas que tentei. Levava a poesia tão a sério que decidi dar um tempo quando notei que estava me tornando repetitivo. Os poemas abaixo foram escritos em diferentes momentos de minha vida, entre 1985 e 2018. Achei interessante uni-los em um único poema, com seus títulos originais separando-os como intertítulos.
Na próxima coluna retorno aos contos, ou a alguma outra coisa capaz de cativar meu coração. Porque, a esta altura da vida, simplesmente não existe mais tempo para dedicar a coisas que não sejam absolutamente envolventes e fascinantes.
A vida é curta demais para não ler poesia, brincar com os cachorros ou sentar-se no quintal, com as luzes apagadas, para ver as estrelas por horas e horas.
Imaginário
Um edifício
é só um edifício,
uma flor é só uma flor.
E o vento, que varre veloz
cidades & pensamentos,
não é nada
– nada! –
à exceção de si mesmo.
Mas
crianças más têm parte com o diabo,
que percorre as ruas de manhã
recolhendo num saco as almas frescas
dos suicidas, enquanto anjos bêbados
assoviam para as mulheres da fábrica.
E eu,
eu não sei o que diabos fiz,
em vidas passadas,
para ser assim, tão excepcionalmente triste,
ó meu amor.
Aos quatro ventos
Imagine que a mão divina pousou sobre a Terra, zangada,
amarelando e tornando difusas as cores outrora tão vivas.
Imagine um figo murcho, esvaziado de seu leite:
assim é o meu coração, de alguns anos a esta data.
Este pequeno feto, parece que funciona, mas perece
a cada novo dia, sob o peso de várias pequenas torturas.
Agruras, conheço-as todas. E há um céu que eu apenas diviso.
Outro dia, levei meu coração a um médico de conceito.
Expliquei-lhe o inexplicável, “33!”, abri-lhe o peito.
E ele apenas sorriu, como quem reconhece uma velha parceira.
Arauto, do alto de seu consultório, megafone em punho,
anunciou aos quatro ventos:
Boletim médico 109/85.
Preservadas as funções vitais, o paciente
precisa de um riso pros dentes;
nada mais.
Dona Vidinha
Dona Vidinha, de repente, ficou agitada!
Todo dia uma crise, um leão que precisa ser morto, uma revelação desconcertante.
Súplicas, perigos, ameaças, dramas de fazer correrem as lágrimas.
Tudo muito fatal, inexorável, impreterível, derradeiro.
Dona Vidinha deve andar vendo novela mexicana.
Bebendo escondido, cheirando cocaína, a danada.
Todo dia um desfile de escola de samba aqui dentro do meu peito.
Uma bateria inteira a desfilar (sabe lá o que é isso, doutor?).
E o coração esticado como o couro de um tambor,
e a cabeça, desde cedo,
uma babel de neurônios excitados.
Não dorme mais, Dona Vidinha (diz que não tem tempo).
Se recusa a ir ao médico, ao pai de santo, ao psiquiatra, ao dentista.
Ginástica, nem pensar!
Só quer emoções fortes, velocidade. Se a encrenca não vem até ela, ela vai até a encrenca.
E eu que segure o volante, né, Dona Vidinha?
Enquanto a senhora faz uma careta e acelera seu motor de não sei quantos cavalos!
Haja stent para acompanhá-la.
Filosofia, oração, amuleto, Rivotril.
Haja livro de autoajuda, música de elevador.
Não é fácil viver com esta senhora
— embora viver sem ela também seja impossível —
e aguentar seu carpe diem, sua sofreguidão por dias D e horas H.
Um dia, Dona Vidinha ainda me mata
(o que, além de paradoxal, seria extremamente injusto para comigo).
Morrer de Vida!
Eu, que nunca gostei de montanha-russa.
Eu,
o caladão da turma,
que sonhava ser apenas um escritor
numa cabana à beira-mar.
Porque estavas aqui
Não foi um bom dia, este dia.
Porém, ainda que pudesse,
como poderia desejar apagá-lo,
se nele bebi de teu sorriso
e, por uns poucos instantes,
me embriaguei com tua voz?
Que venham os fatos
Já declarei
meu amor,
minha indignação
e o Imposto de Renda Pessoa Física ano-base 2018.
Estou quite com o Universo,
a Caixa Econômica
as vidas passadas
e a Junta do Serviço Militar.
Estou em paz comigo mesmo,
com a dieta, os remédios e a História,
(só não perdoo o violão,
por jamais me deixar aprendê-lo).
Estou sereno por dentro,
quieto e lúcido,
como quem presta atenção ao silêncio profundo,
imóvel na escuridão,
à espera do som de um alfinete que cai
ou de uma bomba de nêutrons prestes a explodir.
Que venham os fatos!
Quaisquer que sejam.
Venham sem cerimônia.
Acheguem-se, sejam bem-vindos.
Saberei encará-los sem rancor,
Com a impassividade de um toureiro,
ereto
no centro da arena.
Pronto para o momento seguinte
que pode ser a coisa mais incrível que alguém já foi capaz de imaginar
ou algo simples e bom,
assim como um beijo ou uma flor.
Assim é o homem
Não importa o que ele fez e por onde andou
Se subiu montanhas, se chegou à Lua
Se passou a vida ruminando sonhos
Se colecionou medalhas, amigos ou pedras
Se viveu com muito amor, um amor, nenhum amor
Se foi admirado ou odiado pelas multidões
Se teve filhos, amantes, comparsas
Se foi esperto, ingênuo ou um completo idiota
Se encantou as feras com sua música
Se escovou os dentes e pagou as dívidas
Se enganou a todos e a si mesmo
Se mereceu aplausos, escárnio ou piedade
Se foi feliz ou carregou a existência como um fardo
– Um dia ele descobre
que a última sopa é sorvida a sós,
fria e em silêncio.
À Mãe Terra voltarei
Se não houver vida
– farta, esperada e boa –
lá onde nossos olhos míopes não veem,
se de todo o turbilhão
em que se nasce e vive e ama
sobrar apenas a carne fria,
quieta e esquecida
após as exéquias,
ainda assim terá valido a pena
e em paz, com meu corpo, alimentarei a Terra.
A Terra amiga
– mãe, lar, nave, berço, companheira –,
ninho a céu aberto
de cantos, amores e sonhos,
onde o milagre se fez possível
de tantas e maravilhosas maneiras.
Minha Terra, minúscula e bela,
sempre grávida de vida
em sua rota invisível e precisa
pelo Universo.
O resto é silêncio
Um dia,
invariavelmente,
ele chega:
o momento em que,
mesmo tendo um mundo de coisas a dizer,
deixamos que a chuva e as trovoadas
falem por nós.
Poemas escritos entre 1985 e 2018 © José Carlos Fineis
Imagem de Игорь Левченко por PixabayLeia também, do mesmo autor:
- Sagan 1
- O amor acabou. Devo me separar? (parte 1)
- O amor acabou. Devo me separar? (parte 2, final)
- A ratoeira
- À flor da Terra
- A caça ao monstro. Parte 1: Se tiver de matar, nunca olhe nos olhos
- A caça ao monstro. Parte 2 (final): Nunca use uma arma sem estar pronto para morrer também
- A vida é curta demais para não ler poesia
- Incontáveis existências, infinitos universos
- O incrível golpe da máquina de fazer dinheiro (conto). Parte 1: Da arte de pescar lambaris
- O incrível golpe da máquina de fazer dinheiro (conto). Parte 2 (final): Liberdade, abre as asas sobre nós!
- O sonho emprestado (conto). Parte 1: Sobre homens, flautas e parafusos
- O sonho emprestado (conto). Parte 2: O triste refúgio à prova de vida de Francisco, o solitário
- O sonho emprestado (conto). Parte 3 (final): Até onde minha música chegar, você estará comigo e será parte dela
- Se eu tivesse mais um dia para estar com você
- A felicidade possível passou por aqui (conto). Parte 1
- A felicidade possível passou por aqui (conto). Parte 2 (final)
“A vida é curta demais para não ler poesia, brincar com os cachorros ou sentar-se no quintal, com as luzes apagadas, para ver as estrelas por horas e horas”. Bravo, poeta! A isso, acrescento, aquecer a alma e o paladar com um pão caseiro quentinho e beber um bom vinho com velhos e novos amigos. Abração.
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É isso mesmo, Marco. Cultivar esses hábitos que tomam tempo, são prazerosos e não têm “utilidade prática” nem dão dinheiro é cultivar a humanidade que existe em nós. Porque, se bobearmos, viramos robôs sempre cumprindo tarefas e esquecemos de viver a vida. Grande abraço, meu amigo.
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Meu grande amigo desde a tenra infância, morávamos não muito longe de nossos lares além de colega/amigo no “Achilles de Almeida”!
Estou felicíssimo com sua inteligência nas artes da literatura e o que li nas suas poesias identifiquei o “Fineis que me fez gostar dos Beatles” e, por consequência, do “rock”.
Hoje habito fisicamente um tanto quanto longe, mas graças às redes sociais me aproximei de ti, e muito contente pois, salvo engano, a última vez que nos olhamos fisicamente foi num evento na “Casa de Aluísio de Almeida”, onde fui voluntário na organização da biblioteca lá existente e ausente de leitores e pesquisadores…
Abraços Fraternos Fineis!!!
Zé Rubens.
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José, é verdade, eu lembro desse último encontro na Casa de Aluísio de Almeida. Hoje estamos distantes mas o importante é que continuamos ligados, pela amizade e pela tecnologia. É muito bom quando cultivamos as amizades por tanto tempo, prova do quanto são sinceras e verdadeiras. Obrigado por ler estas mal traçadas linhas e pelo incentivo! Grande abraço e lembranças a essa terra bonita que um dia, se Deus quiser, ainda vou conhecer!
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