Passados 90 anos, grande enchente de 1929 continua na memória de Sorocaba

SANDRA NASCIMENTO – Os dias corriam diferentes naquele janeiro de 1929 quando, entre os dias 14 e 17, o rio Sorocaba transbordou, inundando casas e transformando vários bairros em um grande lago (veja galeria de fotos no final deste texto). A enchente assustava! Chuvas excessivas caíam em Sorocaba havia semanas e as estradas já apresentavam estragos. A cidade perdeu os acessos rodoviários, teve seus dutos rompidos e a água faltou nas torneiras. Os correios foram cancelados. Os trens da Estrada de Ferro Sorocabana deixaram de correr. Automóveis e caminhões ficaram encalhados em vários trechos urbanos e estradas. Com raros dias de sol, essa situação se estenderia até o final do mês. Apenas o serviço de telefonia da época não foi danificado. Esse acontecimento, que completou no último mês de janeiro 90 anos de história, ficou conhecido na cidade como sendo “a maior enchente jamais vista em Sorocaba”.

Segundo noticiou o jornal Cruzeiro do Sul à época, já no dia 16 várias pontes que davam acesso às estradas haviam desabado e a insistência das chuvas provocava inquietação e prejudicava a lavoura. Entre outras, ruíra a ponte que fazia ligação com os bairros “Itapeva e Vossoroca no Votorantim”, onde a população já se servia de barcos. E na Vila Machado, moradores da rua da Margem (atual Leopoldo Machado) estavam sendo retirados por agentes encaminhados pela prefeitura, porque a água avançava progressivamente. No dia seguinte, 15 casas da vila foram invadidas pelas águas, o que provocou um êxodo maior em “batelões (1) e canoas”. Famílias inteiras perdiam criações, objetos e outros pertences. As vítimas eram encaminhadas para o Teatro São Raphael (atual sede da Fundec) e para casas desocupadas na cidade.

O jornal do dia 17 ponderava:

“Por tudo o que descrevemos, bem pode avaliar o público que a situação é bastante delicada. Urgem providências que deverão partir da prefeitura, ora em mãos do sr. João Machado de Araújo. Tais providências, que, temos para nós, serão dadas, convém sejam breves, visto que o momento não é para protelações. Não será demais fornecer a prefeitura gratuitamente gêneros alimentícios às famílias que, ao desamparo, se acham desprovidas de recursos, e bem assim leite às crianças, que sabemos serem em grande número.” (Cruzeiro do Sul, 17/1/1929, p.1)

As chuvas continuavam. No dia 18 chegou a notícia de que na Vila Leão ruíram oito casas. Na rua dos Morros (atual Nogueira Padilha) desabaram seis. O muro do cemitério da Saudade, localizado na rua Ipanema (atual Hermelino Matarazzo) “foi para o chão em longo trecho”. No bairro Bom Jesus (atual Vila Hortência) caiu uma casa na rua Teresa Lopes, outra na Manoel Lopes e uma na Assis Machado, entre outras. E o jornal publicou:

“Não sofreu alteração, para melhor, a grande enchente do rio Sorocaba. As águas continuam a crescer vagarosas, mas continuadamente, obrigando mais moradores das vilas Machado e Amélia ao abandono de suas residências. Na primeira o rio se encontra a poucos metros do grande barracão do sr. Purzer e no campo do São Paulo Atlético, os postos dos ‘gols’ estão totalmente cobertos. O mobiliário das famílias residentes naquelas vilas e na rua da Margem foi ontem retirado das casas em botes e batelões até pontos secos, de onde, em caminhões, seguiu para os edifícios em que estão sendo alojadas as pessoas desabrigadas, ou também para inúmeras casas dessas tantas desocupadas na cidade. Os botes penetram em muitas casas para melhor recolher os objetos que ali se acham. Tal serviço começou a ser feito durante toda a noite de ontem, prosseguindo até tarde. Contou-nos um barqueiro que, na lufa-lufa da mudança, anteontem à noite, certa família esquecera-se em uma casa da rua da Margem um menino de 5 anos. Quando todos os demais se achavam já salvo das águas, na rua coronel Cavalheiros, lembraram-se do pequeno, implorando a mãe aflita ao nosso informante que o fosse buscar. Indo à sua procura, foi o barqueiro encontrá-lo na casa indicada e trepado no mais alto degrau de uma escada de pedreiro, a chorar copiosamente, enquanto as águas cresciam. O pequeno, que o barqueiro soube chamar-se Olívio, foi dali retirado e conduzido junto dos seus.” (Cruzeiro do Sul, 18/1/1929, p.1)

O dia 19, apesar de as chuvas estarem mais brandas, trouxe a informação de que ruíra a ponte do rio Pirapora “na entrada do bairro do Salto” e que a passagem por ali estava sendo feita em barcos. Também a Capela do Cemitério da Saudade apresenta fendas nas paredes.

Fotos antigas mostram vários pontos alagados na Vila Amélia e Além-Ponte: a antiga rua da Margem, a rua Coronel Cavalheiros, a 15 de Novembro, parte do bairro Barcelona (conhecida como “baixada de Barcelona”) e o local onde está o casarão da Companhia Nacional de Estamparia – Cianê (antiga usina de força), à margem direita do rio Sorocaba, próximo da atual praça Lions. Naquele momento, até que o nível da água baixasse, as pessoas só conseguiam passar de um lugar a outro fazendo travessia de barco entre a rua Coronel Cavalheiros e a cabeceira da ponte do rio Sorocaba (atual ponte Francisco Dell’Osso).

As águas se estendiam por muitos lugares. Chegavam notícias de que a capital também sofria rudemente com as chuvas, tendo inundados os bairros ribeirinhos do Tietê, além de Tamanduateí e Ipiranga. Pessoas já abandonavam a Vila Maria, Bom Retiro, Casa Verde, Limão e Canindé. Na cidade de Tietê, caíram cinco pontes. De Jundiaí a Campinas, estava interditada a estrada de rodagem. E Piracicaba teve seus bairros inundados a uma altura de dois metros.

Rio Sorocaba. Foto: José Finessi

“O rio não quer chegar, mas ficar largo e profundo…”
Guimarães Rosa (1908-1967), escritor brasileiro

Decorrente dos acontecimentos, circulava em Sorocaba – entre diz que diz que e boatos – que a “chuvarada” era causada pela aproximação entre Marte e Terra, fato que ocorreria de sete em sete anos e sempre anunciaria uma anormalidade. Outros consideravam a enchente como um “castigo” pela “licenciosidade” de novos costumes. Comentavam também que a represa “do Votorantim” seria totalmente esgotada. Com relação a isso, o jornal Cruzeiro publicou a seguinte nota:

“A enchente, no Votorantim, declina visivelmente. Com relação à represa, são inteiramente infundados os boatos de que seria totalmente esgotada como precaução. A informação que tivemos da fábrica deixa patente que aquela medida extrema, que inundaria a vila, não cabe no momento, pois a água represada está sendo comportada. Apenas a represa se alivia dos excessos.” (Cruzeiro do Sul, 18/1/2029, p.1)

Como é comum em situações assim, a sociedade se manifestou para ajudar os flagelados. A polícia mantinha soldados nos lugares das enchentes. Um grupo chamado “bando precatório” percorria as ruas angariando auxílio aos desabrigados. Informou a imprensa que esse grupo, sob o comando de monsenhor Magaldi, era formado por “distintas senhorinhas” e rapazes com cornetas e tambores do Tiro 359. Trabalhadores da Estrada de Ferro Sorocabana foram destacados para a desobstrução da linha férrea. Caminhões da prefeitura distribuíam água para a população. O Esporte Clube São Paulo ofereceu 300 mil réis. O Esporte Clube São Bento realizou um baile público com renda revertida às vítimas. O Guarany Futebol Clube optou por realizar uma partida beneficente.

Proprietários de juntas de bois ajudavam na retirada de automóveis e caminhões encalhados nas estradas. A Livraria São Luiz, de Luiz G. Vieira, passou a vender fotografias de aspectos interessantes da enchente, pelos necessitados. Os srs. João Vicente de Oliveira, prof. José Odim de Arruda e Joubert Wey organizaram um livro destinado a receber donativos, obtendo até o dia 18/1, seis contos de réis, que, conforme nota, demonstraram “a boa vontade das pessoas em ajudar”. E um artista local, Alberico Silvestre, dedicou uns versos à causa. Intitulada “A enchente do rio Sorocaba”, a poesia foi publicada pelo jornal Cruzeiro e posteriormente, pelo desejo do autor, impressa e vendida em benefício das famílias. Os versos adaptados à musica de “O naufrágio do Aquidabã”, diziam:

“Dezessete de janeiro
Foi dia de sensação
Para a bela Sorocaba
E sua população

O rio que tem seu nome
E atravessa a cidade
Cresceu, subiu do seu leito
Produziu calamidade.

Coragem, sorocabanos!
Calma, conterrâneos meus,
Pois o mal se acabará
Se tivermos Fé em Deus.
(estribilho)

Ali na Vila Machado
Vila Amélia e rua da Margem
A água subiu bastante
Não respeitando barragem

À noite chuvas mais fortes
Que as do dia anterior
Despertaram as famílias
Com serenata de horror.

Recolheram-se ao teatro
Famílias desamparadas
Outras foram p’ras igrejas
Onde estão bem abrigadas.

Os moradores fugiram
Em botes e batelões
As mães abraçando os filhos
Choravam em convulsões.

Mas não foi só na cidade
Que a enchente esteve assim
Pois muita gente sofreu
Lá pelo Votorantim.

E aí na casa de Cristo
Todo dia, toda hora
Estão implorando as graças
Da Santa Nossa Senhora.”

Na segunda-feira 21, começaram a diminuir as chuvas. O dia trouxe “tempo estável e esperança aos sorocabanos”. As estradas continuavam em mau estado e não permitiam a entrada de gado na cidade, mas já entrava a lenha. As circunstâncias criaram uma nova classe de trabalhadores que cobram $500 (quinhentos réis) pelo transporte de uma lata de água.

“Não se sabe ainda quando estará restabelecido o fornecimento de água encanada (…) Devido a esse estado de cousas a cidade apresentava ontem aspecto interessante com uma multidão de pessoas a procurar nas fontes e bicas das proximidades a água para as necessidades caseiras…” (Cruzeiro do Sul, 22/1/1929, p.1)

A vida seguia essa nova rotina ao mesmo tempo em que o jornal anunciava o “Concurso Mundial de Beleza” para a escolha da mais linda moça da cidade, vencido afinal por Francisca E. Malheiro com 8.448 votos. Ou filmes como “Os Fuzileiros”, com o artista Lon Chaney no Cinema São José e “Repórter de Saias” – “uma grandiosa película com interpretação da linda Bobe Danniel”, no Cine-Teatro Alhambra. Os dias traziam o imprevisto:

“Ontem, às 18 e meia, chegou a Sorocaba, inesperadamente, como anúncio de nova era, um trem de passageiros procedente de Mairinque. Esse trem era o mesmo que, no dia 16, partindo de Sorocaba, às 6 horas, não conseguira chegar à capital, ficando os passageiros retidos naquela estação até ontem. Os passageiros chegados descrevem em pormenores o quadro dantesco que se lhes deparou e que lhes era oferecido pelos grandes desmoronamentos ao longo da linha dupla. Ânsias e desesperos da parte dos excursionistas provocaram providências prontas e eficazes dos altos funcionários da Estrada…” (Cruzeiro do Sul, 22/1/1929, p.1).

Mas o dia 22 traz bom tempo e uma certa baixa no rio. Um posto sanitário na rua da Penha distribui vacinas injetáveis contra o tifo (2). Na igreja Catedral, os fiéis iniciam orações diárias pelo término do flagelo e na sede do E.C. São Bento são realizadas novas danças em benefício do povo da cidade. Em 23/1, noticiou-se que as chuvas fortes prejudicaram as plantações de feijão e batata em Sorocaba e Piedade.

As águas baixaram visivelmente no dia 24, ficando “a mais ou menos dois metros do tabuleiro da ponte metálica”. O tempo na cidade atinge a máxima de 30 graus e a mínima de 20. Ainda há falta de água. A imprensa alerta para os perigos das moléstias como a maleita e o tifo. A Fábrica Votorantim começa a se reorganizar para reiniciar o trabalho de tecelagem e estamparia. O serviço postal está normalizado. Reinicia-se o serviço de trem e automóveis. Em 25/1, uma grande propaganda da “Água S. Angélica” ocupa a primeira página do jornal. A baixa das águas se acentua e pessoas residentes nas margens do rio alertam sobre o mau cheiro no local. No dia 26, a notícia da cheia do rio passa para a página 4 do jornal, mas uma forte chuva cai. O tempo fica instável.

Os dias 27 e 28 são portadores de grandes chuvas que alteram o volume das águas. As chuvas rareiam nas cabeceiras (nascentes) e isso afasta o perigo. A crise da água encanada espera a solução. Seguem os trabalhos na linha adutora e não se concluem. “Não há de demorar”, acentua o texto do jornal. A água potável continua a ser distribuída por caminhões.

Em 29/1, o tempo permanece instável: “Copiosas chuvas continuam caindo e estendem-se até às cabeceiras dos rios”, provocando o aumento do nível das águas. Mas a comunicação postal com a capital já está regularizada. No bairro Votorantim crescem as águas do lago que banha a vila, ameaçando a igreja São João. As chuvas são constantes, mas o tráfego já não sofre dano. Durante a madrugada, já no dia 30, as chuvas caem insistentemente, provocando o êxodo dos moradores do bairro da Chave/Votorantim. Escombros da cozinha de uma casa que abrigava uma farmácia, na rua 15 de Novembro, caem sobre a garagem e soterram um automóvel.

Já no dia 1º/2, o Concurso Mundial de Beleza volta em destaque na primeira página e apenas uma nota do rodapé, com o título “A água está aí”, comunica a volta da água nas torneiras e a baixa do nível do rio. Pequenas notas sobre os problemas da enchente seguem dia sim, dia não. E a partir de 4/2, já se anunciava o Carnaval.

Da calamidade, o jornal registrou apenas duas mortes: Antonio Leite, afogado em Santa Helena e o menino Domingos Moris, de 16 anos, encontrado morto no Pirajibu.

Depois de 90 anos, toda essa lembrança ainda é passada de geração em geração e continua viva na imaginação dos sorocabanos. Conceição Leiro de Moura – moradora da rua Leopoldo Machado desde menina – guarda recordações de sua mãe, dona Cecília Fernandes Leiro (1925-1988), contando as histórias da enchente de 29.

Dona Cecília – explicou a filha – morava na rua 15 de Novembro e era dotada de uma memória invejável. Tinha apenas quatro anos quando tudo aconteceu, mas lembrava que, entre tantos lugares, a água também chegou à Casa São Paulo, loja da família Dell’Osso, no final da rua. Alertando para o perigo que existe quando os seres humanos não respeitam a natureza, observava sempre: “Somos nós que desafiamos a natureza, ocupando as margens dos rios que devem ser respeitadas. Ao contrário de Deus, a natureza não costuma perdoar.”

Notas

(1) Batelões são grandes embarcações de ferro ou de madeira, de fundo chato e pouca profundidade (calado), para transporte de artilharia ou carga pesada ou serviços como retirada de areia dos rios. No Brasil, foram muito usados pelos bandeirantes em suas incursões pelos rios durante a colonização.

(2) Tifo é o nome genérico de doenças infecto-contagiosas transmitidas ao homem por picadas de insetos infectados (como carrapatos, piolhos do corpo e pulga dos ratos) e pela contaminação de suas fezes.

“A natureza não faz nada bruscamente.”
Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), historiador naturalista

Referências

Acervo Digital/Jornal Cruzeiro do Sul
Fotos: Photo Hoffmann e autores desconhecidos
Colorização: José Finessi/José Carlos Fineis

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