O encontro de Pagu, Nelson Rodrigues e Dashiell Hammett

Nome do blogue, Safra Vermelha, em quado

PEDRO CADINA – A estreia do autor King Shelter na revista Detetive, em julho de 1944, provocou uma curta convivência entre Nelson Rodrigues, Patrícia Galvão e Dashiell Hammett, ainda que possível apenas nas páginas de ficção. Contemporâneos, os três tinham posições e convicções em extremos tão distantes quanto defender a ditadura militar ou o socialismo, escrever histórias baratas ou traduzir clássicos, levantar bandeiras feministas ou afirmar que toda mulher gosta de apanhar. O fato comum é que construíram obras indispensáveis enquanto viviam suas próprias tragédias, e os leitores se deliciavam com suas produções.

Nelson Rodrigues (1912–1980) dirigiu a revista Detetive, lançada em 1936 pelo conglomerado de mídia de Assis Chateaubriand e sucesso em histórias de crimes, guerras, velho oeste e ficção científica. Em papel jornal, à moda dos pulp fiction dos Estados Unidos, a revista recebia patrocínio dos cigarros Liberty, do medicamento Lactargil e de romances populares da época. Em suas páginas, autores como Jack London, Agatha Christie, H.G. Wells, George Simenon e Dashiell Hammett foram publicados, além de King Shelter, que iniciou sua rápida carreira nos policiais com “A esmeralda azul do gato do Tibet”.

Três imagens da revista Dectetive. A primeira é uma capa da publicação, com uma mulher assustada, com um gato em seu ombro, e um homem mascarado com punhal. Contem chamada com texto: Ação! Mistério! Perigo. A segunda imagem traz um índice da revista com pequena descrição de cada conteúdo. A terceira imagem é a abertura do texto "A mão viva da morta..." com duas imagens como ilustração.
As primeiras edições da revista, quando ainda era Dectetive

Nelson Rodrigues ainda não era o grande autor de Toda nudez será castigada (peça de 1965), tampouco o nome popularizado pelas crônicas de jornal e pelas minisséries de TV nas décadas de 1960 e 1980 respectivamente. O escritor, que apoiou a ditadura civil militar e fez elogios ao general Médici, dirigia a redação de Detetive em 1944, assim como a publicação de histórias em quadrinhos O Guri, também do império Chateaubriand. Nenhuma delas era considerada nobre no mundo da cultura ou do jornalismo.

Em seus 32 anos, Nelson já conhecia muito bem a tragédia das histórias policiais. Sua militância na imprensa vinha de 1925, quando, com 13 anos, relatava crimes passionais e mortes na seção de polícia do jornal A Manhã, de propriedade de seu pai, Mario Rodrigues. Três anos depois, começou a colaborar nas páginas policiais do jornal Crítica, fundado por seu pai com patrocínio da República Velha, por intermédio do então vice-presidente mineiro Fernando de Melo Viana (1926–1930).

A mais sombria e trágica aventura

Durante as festas natalinas de 1929, Nelson testemunhou um episódio que alguns anos mais tarde faria parte de sua coleção de contos A vida como ela é…, escritos entre 1950 e 1961. Na época, o Crítica noticiava em destaque a traição da escritora Sylvia Serafim a seu marido, o médico João Thibau Jr., motivo da separação do casal. Em 26 de dezembro daquele ano, ela invadiu a redação do jornal e assassinou Roberto Rodrigues, irmão de Nelson e ilustrador das reportagens sobre a separação. O pai, deprimido, faleceu alguns meses depois.

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e o fim da República Velha em 1930, o Crítica foi empastelado e sofreu seu desmonte. A família Rodrigues entrou em decadência e Nelson só conseguiu recolocação em 1932, sem remuneração, em O Globo, onde se tornou editor do “Caderno Juvenil” e fez roteiros para histórias em quadrinhos. Oito anos depois, com tuberculose, casou-se com sua colega de redação, Elza Bretanha, que viria a ser a mãe de Nelson Rodrigues Filho.

Quando passou a dirigir a pulp fiction Detetive, Nelson Rodrigues imprimiu à publicação seu estilo, com a inclusão de capítulos dos romances Drácula, de Bran Stoker, e Fantasma da Ópera, de Gaston de Roux. Também arrumou tempo para escrever os episódios de Meu destino é pecar no folhetim de O Jornal (também dos Chateaubriand), anunciado nas páginas da revista com o pseudônimo de Suzana Flag. Em 1984, o folhetim se tornaria minissérie na Rede Globo.

Capa do livro Meu Destino é pecar  com nome de Suzana Flag como autora na parte de baixo, Imagem de mulher sendo abraçada e beijada por homem. Inscrição TEXTO COMPELTO. E preço de capa CR$ 25.
Nelson Rodrigues como Suzana Flag, em Meu destino é pecar

As pulp fiction surgiram no final do século XIX, nos EUA, quando da publicação de The Argosy, contendo histórias de ficção científica, do velho oeste e criminais. Essas revistas, produzidas em papel barato (obtido a partir da polpa da celulose), traziam romances em capítulos, além de contos, para entretenimento rápido. Substituindo os folhetins, elas estão na origem das histórias em quadrinhos e de personagens como Zorro e Tarzan. Após a Segunda Guerra, com a alta nos preços do papel, as pulp diminuem de tamanho, adotando o formato livro de bolso (14 x 21 cm aproximadamente).

A revista Detetive aparece em 1936, na esteira de outras publicações do gênero no Brasil, como a “Série Negra” e a “Para Todos”, ambas da Cia Editora Nacional, e a “Coleção Amarela”, da Editora Globo. Detetive entra em sua terceira fase, em 1942, editada a partir de então pelos Diários Associados (de propriedade dos Chateaubriand) e descrita como “uma revista para homens” ou “a revista das emoções”. Na década de 1950, o Brasil experimenta o maior boom dessas publicações, com títulos como X-9Meia Noite e a própria Detetive.

A vida como ela é…

Para os contos de King Shelter publicados na Detetive, Nelson Rodrigues usava técnicas de jornalismo sensacionalista, criando frases de efeito que anunciavam, por exemplo, “a mais sombria e trágica das aventuras”. King Shelter (refúgio do rei, em tradução livre) era, na verdade, o pseudônimo de Patrícia Galvão (1910–1962), que ganhou o apelido de Pagu aos 18 anos, quando participava de reuniões do grupo modernista na casa de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Falando palavrões, andando pelas ruas sem sutiã ou namorando muito, ela tirava o sossego da high society provinciana paulista.

Patrícia Galvão, a Pagu, na praia, cobrindo os olhos com a mão direita para fugir do sol. Cabelos curtos e sorriso, boca com batom. Está com camiseta grande listrada cobrindo apenas a parte de cima das pernas.
Pagu nos tempos do Modernismo, tirando o sossego da high society

Tão bela quanto fora do padrão “recatada e do lar”, Pagu uniu-se, em 1928, a Waldemar Belisário, numa cerimônia arranjada para esconder seu caso com Oswald, de quem estava grávida. Em 1930, depois da anulação de seu casamento com Belisário e da separação do autor do “Manifesto Antropofágico”, Pagu e Oswald se casam em frente ao jazigo da família Andrade no Cemitério da Consolação, em São Paulo.

No mesmo ano, Pagu viajou para Buenos Aires, onde encontrou Luís Carlos Prestes, líder exilado da Coluna Prestes, resultando no seu grande entusiasmo pelas ideias comunistas. Em 1931, já no Partido Comunista Brasileiro, fundou com Oswald o jornal Homem do Povo, onde escrevia a coluna “Mulher do Povo”. Sob o pseudônimo de Mara Lobo, uma exigência do partido, publicou, dois anos mais tarde, Parque Industrial, primeiro romance proletário do Brasil. Durante o Levante Comunista de 1935, já separada do autor modernista, foi presa, condição que enfrentou pelo menos 23 vezes até 1940.

O herói misterioso, de olhos imprecisos

As histórias de Pagu na revista passam-se na França com o detetive Cassiera A. Ducrot, apresentado como “o mais completo Sherlock da Sureté”, a polícia francesa. Para resolver seus casos, utiliza a dedução e a capacidade de estabelecer relações entre os interrogatórios e as pistas que obtém a partir de informantes.

Em seus contos, há um expediente comum na época, o de dar ao narrador em primeira pessoa a autoria dos contos, no caso King Shelter, personagem que se apresenta como “humilde narrador e colecionador de argumentos policiais”. Os textos incluem as principais características do gênero, como o detetive que se mantém distante dos procedimentos burocráticos; o herói misterioso, dono de “olhos imprecisos, ora gaiatos, ora tristes”; e o gênio dos enigmas, que busca resolver casos complicados. Seus modelos são George Simenon, Maurice Lebran e Edgar Wallace, autores tributários do formato inglês de romances policiais.

A carreira de King Shelter é composta por noves contos, publicados de julho a dezembro de 1944, quando aparece “Ali Babá na Inglaterra”. No início, os textos são publicados nas últimas páginas da Detetive, mas oito edições mais tarde passam a abrir a revista, à frente, por exemplo, dos de Agatha Christie.

Capa do livro Safra Macabra, informando a autora Patrícia Galvão (Pagu) com King Shelter. Ilustração branca com homem em arma no fundo preto.
Safra Macabra, de King Shelter, em edição de 1998

Geraldo Galvão Ferraz, filho de Pagu com seu segundo marido, Geraldo Ferraz, reuniu as histórias policiais anos mais tarde em livro publicado em 1998, com o título Safra MacabraTrata-se de uma referência a Safra Vermelha (Red Harvest), romance de 1929 do norte-americano Dashiell Hammett (1894–1961). Quando os contos do norte-americano apareceram na Detetive, o autor já era reconhecido internacionalmente como o criador do estilo hard-boiled ou noir, e estava na alça de mira do macarthismo e da onda de caça às bruxas que assolou os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.

Mal-estar da civilização

Alguns anos antes, em 1941, Humprey Bogart aparecia nos cinemas do mundo em O Falcão Maltês , baseado no livro de Hammett de 1930. O escritor ganhava milhões de dólares com seu personagem Sam Spade e como roteirista de Hollywood. Já como autor de livros, não publicava nada desde A ceia dos acusados, de 1934.

Após ter participado da Primeira Guerra, Hammett deixou suas atividades na agência de detetives particulares Pinkerton para viver de literatura. No início da década de 1920 aparecem suas primeiras contribuições à Black Mask Smart Setpulp fictions que deram o reconhecimento ao autor como um escritor renovador do gênero policial. Nos Estados Unidos, com a criminalidade e a polícia fervilhando nas ruas, as cidades eram substancialmente diferentes daquelas das experiências de Sherlock Holmes e Auguste Dupin na Europa da segunda metade do século XIX. Hammett, então, constrói enredos que são a expressão do desencanto, com a promessa da resolução de todos os problemas por meio da ciência. Seus textos reafirmam o mal-estar, porém com o ideal de redenção pelo racionalismo, pela lógica e dedução, opondo-se a Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle e Agatha Christie.

Em 1929, Hammett publicou seu primeiro livro, Safra vermelha, retratando o modo de vida dos gangsters durante a Lei Seca e antes da Depressão. A história se passa em Personville, apelidada de Poisonville (cidade veneno), e começa quando o detetive Continental Op é chamado para um encontro com Donald Wilson, que dirigia o jornal da cidade e movia uma campanha contra os vícios e a corrupção, e era filho do magnata Elihu Wilson. O detetive encontra Donald morto e, para solucionar o caso, enfrenta o frágil limite entre crime e lei que reina no local, bandidos e uma femme fatale, além de policiais delinquentes. Estão lá, também, o herói durão mas com fraquezas, as frases curtas e diretas, e os diálogos surpreendentes.

Assassinato nas ruas

O maior sucesso de Dashiell Hammett acontece no ano seguinte, com O falcão maltês, considerado o principal romance noir norte-americano. O livro baseia-se em experiências reais e inclui elementos que estavam fora do que se convencionou chamar de romances ingleses de detetives. O crime estava na rua, e não em um ambiente fechado e isolado, como em Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, ou em Os Assassinatos da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe. Hammett focava suas histórias nos personagens e na causa dos crimes, não na dedução lógica. O detetive não era um exemplo de moral ilibada, tampouco imune a adversidades do mundo (Spade é drogado e leva uma surra de Wilmer), bem como não havia uma verdade indiscutível.

Capa do livro O Falcão Maltês, com ilustração da cabeça de um falcão de onde jorram gotas de sangue. Subtítulo: Sam Spade: um detetive durão e amoral.
O falcão maltês, marco do policial hard-boiled

Na década de 1930, Hammett tornou-se roteirista em Hollywood e iniciou sua militância contra o Nazismo e a entrada do Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Sua atividade política levou-o a dirigir várias associações e fundar o Partido Comunista dos Estados Unidos, em 1937, juntamente com sua mulher Lillian Hellman e a escritora Dorothy Parker.

São dessa época também as bebedeiras e as festas que Dashiell Hamett promovia em sua ampla casa na Bel Air Road, 325. Seu gosto por prostitutas causaria revolta em qualquer feminista. Ainda casado com sua primeira esposa, o escritor mantinha um namoro permanente e contratava uma mulher por dia, geralmente negras ou orientais, de Madame Lee Francis, dona de um dos bordéis mais famosos da cidade.

A fogueira para Hammett e Einstein

Em 1951, Hammett era presidente do congresso dos Direitos Civis, ocasião em que quatro condenados por atividades antiamericanas se recusaram a apresentarem-se ao juiz. O escritor teve sua casa vasculhada e foi chamado para revelar os nomes dos contribuintes da entidade responsável pela fiança e custódia dos fugitivos. Negando-se a dizer os nomes, o escritor é preso e cumpre cinco meses por desacato.

Hammett foi proibido de escrever para Hollywood, como forma de evitar que sua ideologia comunista, tida como arraigada em Safra vermelha, impregnasse a nação norte-americana. Em 1953, o Departamento de Estado baniu suas histórias de todas as repartições do governo. Nos Estados Unidos, a fogueira de livros escritos por “subversivos” virou moda e os de Hammett foram queimados, assim como O significado da relatividade, de 1922, de Albert Einstein, e de uma edição de Moby Dick ilustrada por Rockwell Kent.

Capa do livro Safra Vermelha, indicando o autor Dashiell Hammett. Imagem com uma arma em primeiro plano e imagens de p[aginas de jornal ao fundo.
Safra vermelha, livro impregnado de ideias comunistas, segundo o Marcarthismo

Em 1956, a situação de Hammett era tão delicada que o autor não tinha dinheiro para saldar os 600 dólares devidos a um processo movido contra ele por falta de pagamentos à empresa de clipping que ele contratara alguns anos antes. Em janeiro de 1961, o inventor do romance noir morre de câncer no pulmão. Na época, o crítico John Crosby, do Herald Tribune de Nova York, observou que a TV estava repleta de imitações de Sam Spade. A afirmação é válida até hoje, acrescentando-se, ainda, outros meios, como cinema, serviços stream como Netflix, quadrinhos e, claro, livros.

Anistia ampla, geral e irrestrita

Um ano e alguns meses mais tarde do trágico fim do autor norte-americano, Patrícia Galvão morre de câncer, após tentar o suicídio por duas vezes. Àquela altura, em dezembro de 1962, havia fundado uma revista trotskista, produzido desenhos, escrito críticas de arte, traduzido James Joyce, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Octávio Paz, uma produção bem mais ao gosto da noção dominante de cultura do que as populares publicações de crime e suspense. Sua obra foi resgatada em 1982 pelo poeta Augusto de Campos. Símbolo da luta feminista e revolucionária, ela foi tema da canção Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan.

Foto de Nelson Rodrigues apontando o dedo indicador direito para a câmera. Em preto e branco, o autor tem olhos mortiços e uma verruga à esquerda da boca.
Nelson Rodrigues na década de 1970: apoio à ditadura e pedido pela Anistia

Nelson Rodrigues, editor de Pagu e Hammett, construiu uma obra extensa e monumental, composta por Vestido de noiva (1943), Bonitinha mas ordináriaO beijo no asfalto e Álbum de família, entre outros. Além disso, deixou concepções e frases polêmicas, como “Nem todas as mulheres gostam de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagem”.

Nelson morreu em 1980 de complicações cardíacas, após se posicionar contra os generais que apoiou, defendendo a Anistia Ampla Geral e Irrestrita às vítimas da ditadura civil militar, entre as quais estava Nelson Rodrigues Filho, militante do grupo armado MR-8, preso e torturado entre 1972 e 1979.


5 comentários em “O encontro de Pagu, Nelson Rodrigues e Dashiell Hammett

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  1. Sensacional! Deu muita vontade de ir atrás dessas publicações. O texto do Cadina é ágil e contém alta densidade. Corramos agora pros sebos!

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