PEDRO CADINA – Aquele não seria um dia nada fácil pro Chico. Desde a noite anterior, depois de ver Brasil 3 x 1 Uruguai pela Copa do Mundo de 1970, ele não parava de pensar em como poderia ir de casa até a aula sozinho. Seria a primeira vez sem a companhia de sua mãe da rua Santa Catarina até a escola Estadual Bonifácio de Carvalho. E as ruas de São Caetano do Sul eram “assustadoras, perigosas”, dizia ameaçador, com um risinho sem graça na boca, seu irmão mais velho, o João. E o mundo estava tomado por guerrilheiros e terroristas: “Agora esses loucos pegaram o embaixador alemão. Qualquer hora matam todos nós”, explicava seu pai, nas conversas após o jantar.
Ele precisava crescer, diziam todos na família. Com onze anos, Chico concordava, mas poderia crescer um pouco mais pra frente, não agora, com tantas coisas acontecendo: Copa do Mundo, terroristas nas ruas e ainda a menina da classe que andava sempre com livros e olhava de um jeito diferente pra ele. Naquela tarde tinha também a aula de que ele mais gostava, matemática com o professor Testa. Não podia chegar atrasado. E mais outra coisa: o bolão da classe para a final da Copa. Ele decidiu fazer uma aposta diferente e única, que ninguém mais faria. Mas, para isso, não podia deixar que o vissem assinalar seu palpite, Brasil 4 x 1 Itália. Ganharia sozinho, pois, com certeza, só ele previa um placar com tantos gols dos jogadores canarinhos.

Guerrilheiros
Como não conseguia mais adiar a decisão da família, o garoto iniciou a subida da rua Santa Catarina até a escola. Seu relógio de pulso marcava 12h30, dava tempo de chegar adiantado, mesmo com algum imprevisto. De uniforme escolar, Chico levava na bolsa o caderno, livros, canetas e o gibi do Tio Patinhas. No caminho, fuscas, um Corcel verde, duas Kombis brancas, um Galaxie, buzinas, barulho de motor e gritos de vendedores ambulantes. E, nas calçadas, muita gente, o que o impedia de ver a rua Baraldi que deveria atravessar logo à frente. Não era assim quando sua mãe estava junto, pensou.
– Buuuaaaaááááá, menino – gritou na sua frente uma mulher balançando a saia, enquanto expelia e recolhia a dentadura. O rosto de Chico estava branco, suas pernas tremiam.
– Alzira, sua maluca. Deixa o garoto. – Era o Valdemar, seu vizinho dono de uma loja de discos que correu para ajudar quando viu os olhos arregalados do menino.
– Fica tranquilo. É a Alzira Loca. Ela não faz nada. Fica o dia todo na rua brincando com quem passa – explicou pra ele seu Valdemar. E, virando-se pra mulher: – Esse é o Chico, nosso amigo.
– Chico – repetiu a Alzira. O menino não sabia se era bom ser reconhecido por ela, afinal era louca, podia ser também guerrilheira. Colocou a mão no bolso para ter certeza de que ainda estavam com ele as cinco moedas de um Cruzeiro Novo. Sua vitória no bolão da Copa dependia delas.

Deus nas horas difíceis
Suas pernas ainda estavam bambas e havia um descompasso na respiração. Atravessou a rua e chegou na praça Cardeal Arco Verde em frente à Igreja Matriz. Decidiu rezar, nada melhor do que Deus nas horas difíceis. O interior da igreja era silencioso, ideal para se acalmar. Chico dobrou os joelhos e rezou o que sabia; um Pai Nosso. Cantou baixinho o único trecho que conhecia de uma música cristã: “Segura na mão de Deus e vai”.
Aliviado, estaria na escola a salvo e a tempo para ver a aula do seu Testa, como chamavam o professor que tinha uma cicatriz no rosto e fumava muito. Ele falava de matemática de um jeito diferente, juntando o número zero, o nada e o infinito. Dizia que o mundo se encontra em um triângulo. E também ficava entusiasmado e indignado quando comentava política.
Chico saiu da reza com um sorriso no rosto e olhando para o céu. Mal deixou a porta da Igreja, e viu Regina passando em frente. Coração em pânico, parou antes de chegar à escada que leva à rua. Ela era uma loirinha de cabelos curtos, olhos claros e coxas bem mais grossas que as canelas. Tinha treze anos e na escola todo mundo dizia que era repetente. Sentava-se sempre à frente e à direita do garoto, o que não a impedia de olhar pra trás com frequência e piscar o olho esquerdo pra ele.

A irmã hippie
Chico achava Regina linda. Naquela tarde, ela vestia uma camisa branca, saia chumbo, meias três quartos brancas e sapatos pretos de bico quadrado. Era o uniforme escolar, mas nela ficava mais bonito. Usava também uma bolsa tiracolos de couro meio estranha, cheia de flores, contas e detalhes coloridos em vermelho, amarelo, verde e roxo. Com seus livros, bolsas, brincos e pulseiras com tantas cores e flores, Regina imitava sua irmã mais velha, a Rose, que todos no Bonifácio diziam ser hippie.
A menina continuou seu caminho, sem olhar pra trás. Chico gostava dela, mas não sabia bem o que fazer, nem na escola, nem agora em frente à escadaria da igreja. Teve um impulso de descer rapidamente, encontrar com a menina e irem juntos até a aula, conversando. Mas falar o quê? Do Bolão da Copa, da Alzira, dos guerrilheiros, do mundo em um triângulo? Não, nada disso era legal… Contaria do medo de ir sozinho à escola ou sobre a Igreja? Um garoto bacana vai à igreja antes da escola? Ou falaria que ela é bonita? Não. Ela pensaria que ele queria namorar com ela. Decidiu continuar andando atrás da Regina, pensando melhor no que fazer.
Com a menina uns cinquenta metros à frente, os dois seguiram em direção à rua Rio Grande do Sul, quando aconteceu o que Chico considerou um desastre. Do outro lado, havia a Barbearia do Zulu, onde ele cortava o cabelo com seu pai. Na porta, estava Mineiro, o barbeiro conhecido da família:
Bonitão
– Chico, acenou o Mineiro. Não foi um grito, mas para o menino pareceu um estrondo, ouvido inclusive pelos jogadores brasileiros em Guadalajara, no México. – Tá bonitão, hein! Mas precisa cortar esse cabelo – completou. O garoto sorriu desenxabido e deu um tchauzinho escondido, quase se colocando atrás da arvore e do poste da rua.

Quando olhou de volta pra menina, ela tinha apertado o passo, quase corria. Normal, afinal não queria ficar perto ou ser colega de alguém que é chamado aos gritos na rua, pensou. Regina estava bem mais à frente e Chico pôde ver suas pernas dobrarem a esquina. Aquele poderia ser um bom momento, pois a rua era comprida. Iria correr um pouquinho, alcançar a garota, desculpar-se pelo Mineiro e pedi-la em namoro. Teria até a escola para conversarem, quem sabe até pegariam na mão.
Mas ao entrar na rua Niterói, viu à frente os caras da Escola Senai, uns dez. Todos bem mais velhos, fazendo piadas e falando alto sobre meninas. Se um fazia algo de que os outros não gostavam, era chamado de terrorista. Chico imaginou que podiam ser piores que a Alzira, caso decidissem rir dele. Ficou com medo de alcançar a menina naquele ponto. Se eles ouvem seu pedido de namoro, ou se veem Regina não lhe dar atenção, a caçoada era certa. Uma catástrofe. Nunca mais teria a atenção dela. Decidiu não ir mais à escola. Voltaria e diria à sua mãe qualquer coisa, que não passava bem. Dor de cabeça. Só que perderia a aula do seu Testa sobre equações.
Mãos suadas, coração disparado
Educadamente, os rapazes do Senai abriram caminho para Chico:
– O menino está indo pra escola, saiam da frente, diziam.
Chico andou rápido e viu Regina que parecia ter reduzido o passo. Estaria esperando por ele? O menino chegou tão perto que pôde ver que a garota apertava entre os braços e o peito dois cadernos e um livro. As mãos dele estavam suadas, seu coração disparou e seus olhos incharam. Parou. O que faria se ela dissesse não ao pedido de namoro? Seria o fim. E se ela dissesse sim? O que se faz depois de um sim? Era bom pensar com cuidado. Achou melhor deixar que ela se fosse, que chegasse até a escola e ele iria depois. Provavelmente ficaria tudo para o dia seguinte, outra hora, talvez na semana que vem. O relógio de pulso marcava 12h50. Se ficasse parado, perderia a aula.
Regina atravessou a rua Amazonas correndo. O menino foi atrás, sem se apressar. Na esquina, na frente da padaria, avistou o Oswaldinho, dono da Monza Troca de Óleo, outro colega de seu pai. O pavor tomou conta do Chico. Seria mais um a gritar seu nome, gesticular. Não aguentaria mais essa vergonha perto da garota. Quis mudar de caminho, mas era tarde. Oswaldinho, copo de café com leite na mão, sorria pra ele e esperava sua chegada.
– Boa tarde, Chico. Tudo bem? – cumprimentou, movimentando a cabeça para baixo e para cima.
– Tudo bem. – respondeu o menino, passando rápido para evitar outras surpresas. Ufa, esse sim é um cara educado.
O eu profundo
A menina já estava na reta final para a escola. Logo, na portaria, estariam seus amigos, as amigas dela. Tudo perdido para o garoto, não falaria de assunto tão sério, tão importante quanto um namoro, na frente daquela criançada, que nem sabia o que era ir sem a mãe para a escola. Na entrada do Bonifácio de Carvalho, se aglomeravam professores, auxiliares, estudantes. Seu Testa, cigarro entre os dedos, subia as escadas para iniciar a aula. Era tanta gente que Chico nem viu que trombou com Regina, que derrubou os cadernos e o livro “Fernando Pessoa. O Eu Profundo e Outros Eus”.
– Minha irmã falou pra eu ler, ela disse quando percebeu os olhos de Chico parados sobre o título do livro. – É um poeta com muitos nomes.
Ele ficou imóvel por alguns segundos. Em seguida, desviou o olhar, catou tudo e colocou novamente nos braços dela, que pegava a caneta, o lápis e a borracha do chão.

Regina levantou-se e saiu rápido, olhando para o Chico e mexendo o rosto de um jeito que ele achou que fosse um convite. Ela não foi para a classe, seguiu em direção à quadra. Sem entender exatamente o que acontecia, o garoto foi atrás. Quando chegou lá, a menina estava em pé, no último degrau da arquibancada, vendo-o se aproximar. Chico se encheu de coragem, seria aquela a hora. A aula estava começando, então só teriam tempo para um sim ou não e seguir para a classe. Depois pensaria no que fazer.
Tempo para pensar
– Oi. Quer namorar comigo? – foi a única coisa que o menino conseguiu pronunciar. A garota arregalou os olhos, ficou em silêncio por alguns instantes e respondeu:
– Você precisa me dar um tempo para pensar.
– Como?
– Até segunda-feira eu respondo.
Chico não sabia que as mulheres pediam tempo para pensar, mas não tinha outra coisa a fazer a não ser aceitar. E ir para a aula de matemática.
Naquela quinta-feira, aprenderam equações de primeiro grau, enquanto Chico olhava para Regina e pensava em um jeito de despistar os amigos para apostar no bolão. O professor, após os exercícios, disse algo que ele não entendeu muito bem: “O Brasil vai ganhar a Copa do Mundo, mas isso não quer dizer que esse governo de milicos é bom. Não se iludam.”
Copa do Mundo
No recreio, os alunos falavam do jogo com o Uruguai e da difícil Itália, que vencera o México por 4 x 0. E tinha batido a Alemanha, muito mais forte que o Uruguai. O jogo seria 1 x 0, 2 x 0 para o Brasil, no máximo. Chico deixou para fazer sua aposta no último momento, na sexta-feira, às 17h45. Assim não dava tempo pra ninguém ver e copiar seu palpite. Cravou Brasil 4 x 1 Itália.
Naquele domingo, quando faltavam quatro minutos para acabar o jogo, Carlos Alberto fez o quarto gol do Brasil. Rojões, foguetes e balões em verde e amarelo cobriram o céu. As pessoas gritavam o nome do Brasil, da Seleção. Nas TVs, nas rádios e nas ruas uma única canção:
Noventa milhões em ação
Pra frente, Brasil
Do meu coração
Todos juntos vamos
Pra frente, Brasil
Salve a Seleção!
Chico teve certeza da vitória no bolão. Inacreditável. Ele que nunca ganhara nada em rifa, sorteios ou bolões, havia vencido. Com o dinheiro iria ao cinema, compraria chocolates e mais uns gibis do Pato Donald e do Tio Patinhas. Agora só faltava a Regina aceitar o namoro.

A segunda-feira, 22 de junho, foi um dia fácil para Chico. Pelo caminho até o Bonifácio de Carvalho tinha feito mais amizades, e todos comemoravam o tricampeonato. Na frente da Igreja, um fusca decorado em verde e amarelo. A Barbearia do Zulu, enfeitada com bandeirinhas. No Senai, a rapaziada cantava. Na Troca de Óleo, na padaria e nas calçadas, todos felizes comentavam a partida contra a Itália.
O prêmio
Na escola, Chico receberia seu prêmio. Na parede da sala, o resultado afixado: 35 dos 40 alunos haviam acertado o resultado. Era demais… Não sobraria nada pra ninguém. Não haveria cinema, chocolate ou gibi. Uma decepção. Alguém propôs juntar o dinheiro, comprar um bolo, refrigerantes, e comemorar o tricampeonato. Seria a Festa do Tri.
No final do recreio, lá estava Regina no último degrau da arquibancada da quadra. Chico se aproximou. Meias três quartos dobradas, cadernos e o livro do Fernando Pessoa no chão, ela afastou-se e encolheu os ombros.
– Pensei muito esses dias, disse.
O garoto sentiu na garganta um caroço tão grande que não o deixava falar. O que faria se ela dissesse não? Que vergonha! O melhor seria correr, desistir de tudo já. Não. Podia implorar, explicar como ele é legal então ela diria sim.
– E qual a resposta? perguntou baixinho, após torcer algumas vezes o relógio de pulso no braço.
Regina sorria levemente, balançando a cabeça de um lado para o outro.
– Minha mãe disse que é muito cedo, que não posso namorar, respondeu desviando o olhar de Chico.
Ele suspirou demoradamente levantando as mãos e olhando para o céu. Não sabia bem por que, mas pediria desculpas e iria embora para a aula.
– Mais essa agora, murmurou, enquanto seu corpo encolhia.

Língua !
Viu Regina com a mão esquerda cobrindo um sorriso que tornava saliente a maçã de seu rosto.
– Mas a minha irmã Rose acha que posso namorar, se eu gostar de você, ela continuou.
O menino quase sorriu, mas parou ao perceber seu coração batendo mais rápido. Seria hora de rezar um Pai Nosso? Limpou a garganta e gaguejou:
– E então…
– Minha reposta é sim, disse a menina. Seus braços estavam abertos, como se fosse agarrar o mundo. Seu corpo brilhava sob o sol de inverno.
Chico ficou parado, seu peito estava frio, os olhos arregalados. Em um dia havia ganho um bolão e recebido aquele sim. O que fazer? Abraçar, dar um beijo em Regina, ir para a aula?
– Mas tem uma coisa que eu quero, disse a menina, olhando nos olhos dele e fazendo silencio por longos segundos.
O que seria agora? pensou o garoto, mordendo o canto do dedo polegar.
– Quero dar beijo de língua, Regina completou com um sorriso que preencheu sua face.
Escurinho do cinema

O que era isso? Chico nunca imaginou que tinha língua nesse negócio de beijo. O que fazer? Abraçá-la, dar um beijo? Mas como? Ele deveria também pedir um tempo para pensar? Ou o melhor seria voltar para a aula, saírem correndo. Esfregou os braços, olhou ao redor para ver se tinha muita gente. E teve uma ideia:
– Eu topo, respondeu. Sentia que podia topar tudo com Regina. Sua respiração estava curta e sua cabeça balançava. – Mas na matinê do Cine Vitória, domingo à tarde.
O escurinho do cinema era ideal para beijos e abraços. E ele ainda teria tempo de perguntar pro seu irmão como colocar língua em beijo.
– Sim, sim, sim, respondeu Regina, dando pulinhos, como se flutuasse no ponto mais alto da arquibancada.
Na sexta-feira, a Festa do Tri reuniu dezenas de alunos e professores. Tinha um bolo enorme de chocolate, outro de laranja, guaraná, Coca Cola e Fanta. Depois do Hino Nacional, todos cantaram “Noventa milhões em ação. Pra frente, Brasil…” Menos o professor de matemática que nunca mais apareceu na escola. No corredor, Chico ouviu uma professora cochichando pra outra que o Testa era subversivo e foi levado pelos milicos. Na volta pra casa, o garoto passou na biblioteca pública da rua Baraldi. Foi procurar um livro que explicasse bem esse negócio de subversivo para ver se encontrava novamente o professor. E, também, pra ler o tal do Fernando Pessoa e saber como podiam existir outros eus.
Saboroso! Quem foi menino se identifica. Muita minhoca na cabeça, um mundo cheio de desejos e vergonhas se desenrolando como um filme. Gostoso de levar, gosto de ler mais…
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Uma delícia de leitura… coisas que vivemos… lembro muito bem desse uniforme que as meninas usavam… e a foto do cinema… e sua forma leve de nos conduzir aos outros eus… mais profundos… esses nomes não me são estranhos também… abração
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