O nome da rosa: o medo do conhecimento, das heresias e do riso.

Marcello Fontes

Umberto Eco foi um filósofo especializado em semiótica, linguista e escritor italiano, respeitado tanto no meio acadêmico quanto literário. E apesar de ser autor de muitas e fascinantes obras em diversas áreas, foi o romance O nome da Rosa, de 1980, que lhe deu renome e projeção mundial para além do universo acadêmico. A trama, repleta de filosofia, teologia e história, foi adaptada com grande sucesso para o cinema em 1986, pelo diretor Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery (recentemente falecido, que dizem ter sido uma exigência de Eco para o papel) e Christian Slater nos papéis principais. Quase quarenta anos após o lançamento da obra, o ator e produtor John Torturro viu atualidade na história e contratou Giacomo Battiato, historiador, medievalista reconhecido, romancista e diretor para auxiliar a produção e direção de uma minissérie em oito capítulos que estreou no primeiro semestre aqui no Brasil, na plataforma Starzplay™, agora também disponível para assinatura na Amazon Prime Video™.

Umberto Eco (1932 – 2016)

A razão pela qual Torturro enxergou atualidade em uma obra de quarenta anos, já adaptada para o cinema há trinta e quatro e que se passa no século XIV demonstra que, de algum modo, há certa circularidade nos fenômenos históricos e culturais, ainda que não se possa levar esta tese às últimas consequências.

Tanto lá quanto agora, temos um tempo de certa convulsão política entremeada pelo medo de muitas coisas. Os portadores de dogmas religiosos expressavam temor pelo conhecimento, que receavam poder abalá-los (e, de certo modo estavam corretos). Assim, o conhecimento era visto como perigoso e até mesmo combatido e desprezado em nome da manutenção de uma fé que necessariamente teria que apresentar-se de modo cego e mesmo obtuso. Expressões da natureza humana eram desprezadas e vistas como demoníacas. E, mais do que nunca, ideias divergentes no universo religioso eram tratadas como heresia, a pior e mais terrível pecha que poderia ser impingida a alguém ou a algum grupo. Grande parte das heresias da baixa Idade Média tinha forte cunho social e inconformista, sendo esmagadas pelo assim chamado braço secular da Igreja, que agia por intermédio da Santa Inquisição. A Ordem Franciscana era combatida pelos príncipes da Igreja por ter a ousadia de defender a vida simples, não afeita a bens materiais e preocupada com a condição aflitiva dos seus semelhantes e com a natureza. Em tempos de negacionismo irrefreado, terraplanismo, aversão à ciência, conservadorismo político e fundamentalismo religioso, o que inclui acusações de heresia a um Papa que faz afirmações em prol dos menos favorecidos e minorias, curiosamente chamado de Francisco, parece que Torturro tem razão.

Já é um lugar comum a afirmação de que a obra cinematográfica não faz jus à obra literária, o que em boa medida é injusto, pois se tratam de meios diversos e que se valem de instrumentos diferentes. Enquanto um autor literário pode dispor de centenas ou mesmo milhares de páginas para compor e desenvolver sua trama e contar com a imaginação do leitor para buscar nas entrelinhas de seu texto inúmeros detalhes e conexões, o cinema tem no audiovisual sua força e sua fraqueza. Então, é claro que tanto o filme de 1986 como a minissérie de 2020 não tem como concorrer com a obra de um gênio como Eco, escrita em profundas 562 páginas. Claro que a atual minissérie com mais de oito horas para desenvolver aquilo que o filme fez em pouco mais de duas tem vantagens. Mas ambas centram-se mais nos aspectos investigativos, deixando a forte presença filosófica da obra de Eco quase de fora.

A obra de Umberto Eco mescla personagens históricos com outros supostamente existentes e até mesmo uma homenagem a um grande filósofo. O narrador da história, o Frei beneditino Adso de Melk, parece ter sido descoberto por Eco através de uma cópia de manuscrito medieval que lhe caiu às mãos de modo quase acidental e do mesmo modo delas esvaiu-se, conforme relata em um breve texto introdutório da obra. Por algum tempo ele julgou ser um personagem fictício, até achar pistas do mesmo manuscrito em outros locais. Não se sabe até que ponto os relatos envolvendo Adso de Melk são fatos ou criações, portanto.

Convém aqui apontar que o presente artigo traz alguns spoilers que poderão tirar um pouco do prazer daqueles que ainda não tiveram contato com o livro, filme ou série poderão desfrutar. Mas nada que invalide ou impeça a fruição da obra.

O inquisidor francês da Ordem Dominicana Bernardo Gui (1262 – 1331) é um personagem histórico real e foi um prolífico escritor, além de realmente ter muito poder junto aos Papas Clemente V e João XXII, bem como ser temido e respeitado por boa parte da Igreja à época, como a obra de Eco retrata.  Parece que sua crueldade como inquisidor foi menor do que a propalada, entretanto, pois após a observação dos documentos oficiais da época, abertos à investigação de historiadores de todas as vertentes, inclusas as não católicas e as ateias, pelo Papa João Paulo II, que promoveu o Primeiro Simpósio Internacional de Historiadores, em 1998, verificou-se que de mais de 900 casos julgados, condenou “apenas” 43.

Mas é no personagem de William de Baskerville que encontramos um fulcro filosófico muito interessante na obra. Aqui há claramente uma dupla homenagem:  a Guilherme de Ockham, Frei franciscano, filósofo e teólogo de renome no século XIV, no qual se passa a obra, e a Sir Arthur Conan Doyle e seu mítico personagem Sherlock Holmes, depreendida da obra O cão dos Baskervilles (1902), de onde Eco retira o sobrenome de seu personagem central. As representações cinematográficas preferiram uma maior ênfase no papel “sherlockiano” de William de Baskerville e não em sua vertente filosófica.

Guilherme de Ockham (1285 – 1347)

Quem foi e o que pensava esta figura que inspirou Eco e como sua vida ainda hoje pode nos inspirar? Guilherme de Ockham foi um frei franciscano inglês de grande influência na Filosofia Medieval e até hoje muito influente em áreas como filosofia da linguagem e semiótica (estudo dos signos como sistemas de significação). A escolha desta figura para ser homenageada pelo personagem William de Baskerville por parte de Umberto Eco não é, como nada em sua obra, aleatória, visto ser Eco grande autoridade em semiótica. Nasceu em Ockham, pequena aldeia do Condado de Surrey, daí seu “sobrenome”, como era comum desde a antiguidade. Era conhecido por seus contemporâneos como Doctor Invencibilis (doutor invencível) e Princeps Nominalium (príncipe ou líder nominalista).  Ockham não era nada bem visto pela cúpula eclesiástica e teológica do século XIV. Já em 1339 a Universidade de Paris condenou sua doutrina, vinte anos depois, o papado recomenda aos estudantes que se afastem desse sofista e um século e meio depois,  o Rei Luís XI da França renova a proibição através de um edito. Ou seja, Ockham era muito influente, mas seus discípulos poderiam ser vistos como suspeitos.  Sua considerável influência permaneceu por um bom tempo de certo modo secreta

Curiosamente, uma das teses mais relacionadas a ele e sempre mencionadas em conversas quando alguém quer demonstrar um verniz intelectual, a famosa Navalha de Ockham, nunca foi exatamente proferida por ele nestes termos, que dizem que existindo diversas teorias e não havendo evidências que comprovem se é mais verdadeira alguma em relação a outras, vale a mais simples. O que ele realmente desenvolveu foi o princípio da economia, a qual afirma que pluralidades não devem ser postas sem necessidade. Na verdade, o termo Navalha de Ockham e sua adaptação às teorias mais simples como válidas só surgiu no século XIX.

Conhecimento

Ockham defendia que a tão pretendida aliança ou concordância entre a fé e a razão, a verdade revelada e a investigação filosófica é impossível, sendo assim a um só tempo uma das últimas figuras de algum modo ligada à escolástica, que defendia ardorosamente essa possibilidade, e aquele que lança uma espécie de pá de cal sobre suas pretensões. Só esta postura já explicaria em parte a ojeriza que a Igreja passa a lhe dedicar, pois um conhecimento não tutelado pela fé era algo perigoso, imprevisível, incontrolável e, portanto, temido.

Quando foi convidado a explicar-se e defender-se das acusações que lhe eram imputadas em Avignon, então sede do papado, acabou envolvido também na famosa querela (debate, discussão) da pobreza de Cristo e dos apóstolos, que havia levado a um ponto agudo e crítico a relação entre a Ordem Franciscana e o Papa João XXII, como muito bem relatada na obra de Eco. Michele de Cesena, Ministro Geral dos franciscanos (também personagem em O nome da Rosa), incumbe Ockham de examinar criticamente as objeções papais contra a concepção de pobreza expressa por eles. Por fim, ambos acabam se vendo em risco de morte e fogem de Avignon para refugiar-se com Luis da Baviera, onde Ockham permanecerá exilado e excomungado até o fim de sua vida, dedicando-se mais exclusivamente à Filosofia.

De certo modo, Ockham dá continuidade a um processo iniciado anteriormente por John Duns Scot (1266- 1308), filósofo e teólogo escocês, também franciscano, com relação ao que ficou conhecido como querela dos universais. Em filosofia, o universal refere-se àquilo que tem caráter de universalidade lógica, em oposição ao que é tomado apenas de modo particular.  Trata-se de uma ideia geral, conceito, termo abrangente aplicável a todos os indivíduos de uma mesma classe de seres ou objetos. Quando se fala em humanidade, estamos, por exemplo, diante de um universal; Sócrates, enquanto indivíduo é um particular. 

Até o final da escolástica, o universal permanecia atrelado a uma realidade que poderia ser compreendida como uma ideia de caráter transcendente (que vai além da natureza física das coisas), que origina, fundamenta e classifica toda a realidade imanente (âmbito da experiência possível, captação da realidade através dos sentidos), preexistindo em relação aos seres materiais e às consciências humanas, como queria Platão, ou como termo geral que representa a essência ou substância de um ser singular, e que somente existe, ao contrário da autossubsistência das ideias platônicas, ligado aos objetos materiais. Tomás de Aquino irá relacionar o universal às realidades que estão na própria natureza divina.

A querela dos universais irá opor realismo e nominalismo, pondo fim à hegemonia escolástica acima descrita. O realismo atribui aos universais uma concretude e realidade específica, considerando que possuem uma natureza autônoma, desligada dos objetos particulares e concretos, preexistente à consciência humana.  O nominalismo nega qualquer forma de realidade dos universais, considerando-os como meras convenções, nomes ou entidades linguísticas atribuídos com a finalidade de facilitar a compreensão de um conjunto de objetos singulares.

Como “Príncipe Nominalista”, Ockham não apenas nega radicalmente a realidade concreta dos universais, mas os considera conceitos: o universal não é uma coisa, mas um conceito. O conceito para ele nunca será algo com conteúdo objetivo, mas uma espécie de “cacoete” da alma (mente ou espírito). Temos a necessidade de refletir sobre a pluralidade dos objetos singulares e deste modo chegamos aos conceitos, que só “existem” na alma, sem qualquer realidade objetiva.  Seria, nos dizeres de Ockham, um acidente mental que mantém uma relação de semelhança com as coisas que representa, o que também seria uma relação de significação. Todo conceito universal poderia então ser definido como um signo natural, visto estar, como termo mental, significando várias coisas cujo lugar ele ocupa nas proposições mentais, que constituiria uma linguagem mental a qual a linguagem oral e escrita estão submetidas.

O desenvolvimento do pensamento de Ockham quanto ao universal vai ser base para futuras teorias no campo da psicologia cognitiva, linguística e claro, semiótica. Mas Ockam tem também uma obra vasta no campo da Lógica, da Física, da Teologia e da Política. É uma espécie de precursor do empirismo, da tese da separação entre Igreja e Estado e da liberdade de investigação. Foi decididamente um homem muito à frente do seu tempo e tornou-se uma vítima do medo do conhecimento livre de amarras. Mas isso é coisa da Idade Média. Ou não apenas?

Heresia

Um tema muito presente em O nome da Rosa é a heresia e os hereges. A trama da obra tem nesse conceito e em determinadas formulações e aspectos dele um papel fundamental. Mas afinal, o que é heresia? Certa vez um professor me disse que a heresia é aquilo que é derrotado no concílio.  Não muito mais tarde, foi ele próprio acusado de heresia e falta moral grave nunca comprovada e devidamente defenestrado da instituição religiosa em que estudei. A religião teme profundamente a heresia e entende que precisa combatê-la a todo custo.

Literalmente, o termo heresia é derivado do grego haíresis ou heireseōs, que significa ação de tomar; escolha, preferência. Mas esta escolha ou preferência não pode se opor ao dogma, que é uma verdade absoluta inquestionável sobre a qual as doutrinas de uma religião, seja qual for, assentam-se.  A heresia será então interpretação, doutrina ou sistema teológico rejeitado como falso pela Igreja. No caso do cristianismo, historicamente o que define ser um conjunto de doutrinas ortodoxas, retas e sãs ou heresias é um concílio, que é uma reunião especialmente convocada para deliberar sobre questões de fé, costumes, doutrina ou disciplina eclesiástica. O que não é ali aprovado vira automaticamente heresia.

Templários queimados na estaca, 1307

Contudo, o problema dos hereges e das heresias para a Igreja Cristã em particular é que muitos deles não se conformam com esta designação e resistem, defendendo suas teses e contradogmas, firmando-se como grupos muitas vezes consideravelmente numerosos e persistentes.  A Igreja irá buscar a dissuasão e dispersão destes movimentos arduamente, usando todos os meios disponíveis para tanto. Também há na história do cristianismo grupos que não eram heréticos até que em dado momento passaram a ser, como os templários, numa clara demonstração do jogo de poder por trás do que é ou não considerado heresia. Heresias ameaçam a autoridade da Igreja que se considera portadora da verdade e sua existência é vista como um acinte ao poder, domínio e autoridade que o próprio Deus supostamente conferiu a este e não àquele grupo.

As heresias que surgiram no chamado período patrístico (dos pais da Igreja) tinham um fundo mais fortemente filosófico e teológico, fazendo especulação racional em torno dos princípios ou dogmas cristãos, tais como a divindade e humanidade de Cristo, a essência divina, a trindade e a própria compreensão do que é a Igreja, como fizeram os marcionistas, valentinos, nestorianos e muitos outros. Algumas resistiram por séculos e acabaram mesmo por influenciar grupos hoje tidos como ortodoxos.

Já as heresias medievais foram fortemente marcadas pelo aspecto revolucionário, cunho popular e mesmo beligerante em alguns casos. Elas discutiam aspectos éticos e relacionais de uma religião já há muito institucionalizada e poderosa. Particularmente nos séculos XII e XIII, tiveram forte apelo social e em alguns casos foram radicalizações de movimentos que, embora por vezes na corda bamba, permaneceram com o selo da ortodoxia e vínculo institucional, como os franciscanos. Este período da História da Igreja Ocidental comportou tantos movimentos denominados heréticos que ficou marcado para alguns historiadores como os séculos heréticos.

O frei Dolcino de Novara, criador do Movimento Dolciniano, em uma litografia de Michel Doyen (1809-1881).

O movimento herético que aparece na obra de Eco é o dos dolcinianos. Os personagens Frei Salvatore, que volta e meia proferia de modo peculiarmente confuso o grito de reconhecimento dolciniano penitenziagite, que quer dizer penitencia-te e Frei Remigio têm um passado em comum em meio ao movimento, que desejam, a despeito das indiscrições de Salvatore, esconder. Por fim, estas ligações ao serem reveladas colaboram para um desfecho cruel e trágico do relato de Adso de Melk sobre os terríveis fatos ocorridos na Abadia não nomeada durante sete dias de 1327.

Os dolcinianos tem esta designação devido ao seu líder, Frei Dolcino de Novara. Não se sabe se este título de Frei decorre de uma ordenação eclesiástica da Igreja ou se é devida à sua participação em outro movimento anterior, o dos irmãos apostólicos, do qual os dolcinianos são uma espécie de continuidade. Tais movimentos desenvolveram-se no norte da Itália, nas regiões da Lombardia, Trentino-Alto Ádige e Piemonte. Tratava-se uma radicalização do pensamento de Francisco de Assis e seus seguidores, iniciada por Gerard Segarelli, que vendeu sua casa e tentou ingressar na ordem franciscana, mas por possuir pouca ou nenhuma instrução foi recusado. Seguiu pregando de forma mendicante, conquistando adeptos que se tornaram conhecidos como irmãos apostólicos e incomodando a Igreja, que por fim o queimou em 1300 na cidade de Parma.

É aqui que Dolcino entra em cena, com sua grande eloquência e capacidade de persuasão. Chegou a arrebanhar cerca de dez mil adeptos no auge do movimento. Dolcino não apenas pregava a pobreza e a simplicidade, mas acreditava que alguma forma de violência poderia ser utilizada para convencer a Igreja da necessidade de arrependimento e adesão à vida simples.  O movimento executou muitos padres e bispos que se opunham à sua visão. Defendiam o fim da eucaristia e da adoração da cruz, bem como o fim da confissão. Há quem diga que os dolcinianos defendiam a comunhão de tudo, inclusive das mulheres. Tiveram forte atuação militar, chegando a ocupar a cidade de Vercelli e também Valsesia, na região de Piemonte. Somente uma cruzada com o apoio de forças militares diversas conseguiu por fim ao movimento, sendo Dolcino queimado em 1° de Julho de 1307.

Essa sanha da Igreja Cristã em coibir a todo custo tudo aquilo que tivesse qualquer “cheiro” de heresia durou milênios, iniciando-se nos primórdios do período patrístico. O decreto do Imperador Bizantino Teodósio I em 380 d. C . não apenas deu ao cristianismo o status de religião de Estado, mas defendia o desprezo e a necessidade de perseguição a quem não fosse cristão segundo as definições dogmáticas conciliares: “ [..] Os demais, que declaramos verdadeiramente tolos e loucos, carregarão a vergonha de uma seita herética. Tampouco poderão ser chamados igrejas seus locais de reunião. Por fim, que os persiga primeiramente o castigo divino, porém depois também nossa justiça punitiva, a nós outorgada por sentença celestial.”

A Idade Média prosseguiu esta perseguição inclemente, como vimos. E mesmo com o advento em 1516 da Reforma Protestante e suas teses de livre exame das escrituras e sacerdócio universal, protestantes também foram inclementes com os que divergiam de seus dogmas. O caso de Miguel Servet, morto em Genebra em 1553 com o assentimento do reformador João Calvino é tristemente célebre. Sobre isso, o teólogo protestante não conformista Sébastien Castellion (1515-1563) afirmou que “[…] Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem. Quando os genebrinos executaram Servet, não defenderam uma doutrina, mataram um ser humano.”

A contemporaneidade atenua as penas físicas, mas continua a perseguir quem não se adéqua ao esquema doutrinário vigente. Na verdade, combater a heresia é muito mais uma preocupação com poder do que com verdade, como disse Rubem Alves, ele mesmo vítima de uma inquisição sem fogueiras, no dizer de conhecido historiador protestante brasileiro:

Heresia não é algo que se situa no plano da verdade, como oposição a ela. A heresia se situa no plano do poder. Ortodoxos são os fortes, aqueles que têm o poder para dizer a última palavra. Por isso eles se definem como portadores da verdade e aos seus adversários como portadores da mentira. A heresia é a voz dos fracos. Do ponto de vista dos sacerdotes, os profetas sempre foram hereges. Do ponto de vista dos fariseus e escribas, Jesus também foi herege. E como as escrituras sistematicamente se situam ao lado dos fracos contra os fortes, é melhor dar mais atenção às heresias do que às ortodoxias.

Rubem Alves, Dogmatismo e Tolerância

Riso

Por fim, o tema do riso e o medo de que sua normalização poderia trazer distorções e mesmo perturbações à ordem estabelecida pelos dogmas, tradições e costumes aparece como uma espécie de fio condutor da obra de Eco e mesmo o seu desfecho. Tudo está relacionado ao suposto segundo livro da obra Poética, de Aristóteles, que é considerado perdido.

Nesta obra, aquele que possivelmente tenha sido o pensador que sobre maior variedade de temas e áreas do conhecimento humano escreveu, irá tratar sobre os variados gêneros literários gregos.  A proposta era tratar de poesia de modo geral, falando se de seu uso na épica (poema de cunho narrativo sobre feitos heroicos e lendários, como a Ilíada de Homero), tragédia (peça em verso, de forma ao mesmo tempo dramática e lírica, na qual figuram personagens ilustres ou heroicos, recitada e representada no teatro grego antigo, como Édipo Rei, de Sófocles) e comédia (peça cômica cujo propósito é divertir e criticar por meio satírico, como As Nuvens, de Aristófanes). O texto que temos fala das duas primeiras, inclusive em termos comparativos, enquanto que a parte sobre a comédia perdeu-se. Em outro momento nos aprofundaremos nos fascinantes temas da poética aristotélica, como a catarse, o reconhecimento, bem como o terror e a piedade que a boa tragédia deveria inspirar em seu público.

A grande questão que permeia O nome da Rosa é que o riso, dentre outras formas de expressão naturais humanas, era não apenas mal visto por teólogos e filósofos da época como veementemente condenado. O riso era visto como uma desvirtuação e desrespeito à conduta esperada por parte daqueles que serviam a Deus, de quem se exige sobriedade e abnegação. O riso e suas consequências trazem um prazer quase libidinoso na visão medieval e põe em risco as convicções de vida sacrificial, podendo até semear a dúvida. Tais concepções são apontadas na obra principalmente pelo velho monge e antigo bibliotecário Jorge de Burgos.

Mas se Aristóteles, que era à época considerado como a base filosófica da fé cristã desde a escolástica com Tomás de Aquino e designado respeitosamente como o filósofo não apenas autorizasse o riso, mas o considerasse uma intrínseca qualidade humana (o homem é o único animal que ri) que inclusive necessita da racionalidade para a compreensão das motivações que levam a este estado, como ficaria o status quo solene e circunspecto?

Em O nome da Rosa, esta segunda parte da Poética de Aristóteles que examina e autoriza o riso por meio da comédia não está perdida, mas oculta. Ela é a obra que se encontra na finis africae, a parte desconhecida da imensa biblioteca da abadia, somente acessível para o bibliotecário e seu auxiliar imediato. A tentativa de se impedir a leitura e eventual divulgação, por menor que seja desta perigosa obra, está por trás de quase todos os terríveis eventos testemunhados por Adso de Melk. E a tresloucada tentativa de por fim destruir este tratado sobre a comédia pelo velho monge Jorge é o que causa a destruição da fantástica e vasta biblioteca da abadia, numa clara alusão ao incêndio da lendária biblioteca de Alexandria.

A história humana está repleta de coragem e medo. Nem sempre os corajosos obtém imediatamente o que lhes inspira coragem, mas o medo mais impede o pleno desenvolvimento humano do que protege aqueles que são por ele tomados. A obra de Eco ecoa (com o perdão da rima infame) momentos cruciais da Idade Média que, para o bem e para o mal, não estão aprisionados apenas naquele período.

O medo do conhecimento tem se transformado em desdém e desprezo pelo saber, que passa a ser tido muitas vezes como empecilho para a vida ao invés de ferramenta para usufruí-la. Uma espécie de primado da ignorância, resultando em negacionismo e absurdos lógicos e factuais produz uma espécie de realidade paralela que assistimos ser construída não apenas, mas a partir daquilo que hoje se chama de virtual. Lembre-se que Eco é aquele que disse que a internet deu voz ao idiota da aldeia. Não só voz, mas poder.

A heresia continua a ser a ofensa com a qual se desqualifica aqueles que não se enquadram na crença majoritária, religiosa ou não. Ganha novas cores e expressões esta antiga pecha, que ora se reproduz como desconsideração ao diferente, ora como ataque aos que ousam construir uma fé que envolva engajamento social e desejo de igualdade: até o Papa Francisco já ganhou o “xingamento” de comunista.

Continuamos também a muitas vezes ver através dos séculos tudo aquilo que é naturalmente relacionado ao humano, tal como o riso, o amor, o sexo,  o êxtase ou a emoção ser tratado como menor, impróprio, inadequado, exagerado ou mesmo proibido não apenas pela religião, mas pela filosofia, ciência e instituições. Confundiu-se o valor da racionalidade com a exclusão de tudo que não partir dela. E transformou-se a racionalidade em instrumento de controle e dominação. O dogma (religioso, político, econômico) é detentor de um verniz racional. Tudo o que procede dos sentimentos é perigoso e desestabilizador. Por isso, controle se faz necessário.

O que pode ficar como lição é a luta pela liberdade de pensar, sentir e exprimir-se que Guilherme de Ockham, representado por William de Baskerville apresenta. A necessidade de uma perspicácia para desmistificar tudo aquilo que não se sustenta como verdade factual e lógica, a desconstrução de convenções, não para necessariamente destruí-las, mas para deixar claro que são apenas isso, nomes, acordos e pactos, não realidades intocáveis. Adso termina seu relato com a expressão latina adaptada de um monge do século XII: Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus (A rosa antiga está no nome, e nada nos resta além dos nomes).

Para saber mais:

Livro O nome da Rosa de Umberto Eco para download

Filme O nome da Rosa, de 1986.
Trailer da minissérie O nome da Rosa. A Starzplay™ oferece um período de teste gratuito de uma semana, suficiente para os 8 episódios da minissérie.

Imagem em destaque: série O nome da Rosa da Starzplay™, com destaque para John Torturro no papel de William de Baskerville e Damian Hardung como Adso de Melk.

Um comentário em “O nome da rosa: o medo do conhecimento, das heresias e do riso.

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  1. Dar nome aos bois sempre foi perigoso. Conceituar o que é boi sempre deixa bois sem nome. Como definir sem ser excludente? Como li uma vez, uma rosa chamada por outro nome será sempre uma rosa.

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