
Aconteceu em uma escola distante…
Evandro Affonso Ferreira
Hoje me deu vontade de ler outra vez um trecho de um texto meu que está numa plaquete editada pelo selo Demônio Negro. O título é Cacimba…
Pílula do dia
Reflexões insólitas


Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust
Marcel Proust nasceu em Paris, 1871. Quando passou a colaborar em La Revue Blanche, frequentou ao mesmo tempo os salões aristocráticos parisienses, cujos costumes lhe forneceram material para sua obra maior. Otto Maria Capeaux: ”Todos os personagens de Em busca do tempo perdido são projeções da alma do artista Proust que sonha; e como acontece no sonho, aparecem entre os desejos e receios personificados os resíduos do dia anterior, quer dizer, restos memorados do único mundo real que o pobre doente conhecera nos anos anteriores. Eis o mundo mundano de Marcel Proust.”
Trecho do livro:
Quando via um objeto exterior, a consciência de que o estava vendo permanecia entre mim e ele, debruava-o de uma tênue orla espiritual que me impedia de jamais tocar diretamente sua matéria; esta como que se volatilizava antes que eu estabelecesse contato com ela, da mesma forma que um corpo incandescente, ao aproximar-se de um objeto molhado, não toca sua umidade, porque se faz sempre preceder de uma zona de evaporação.
Entrevista: Andréa Pachá

Escritora, juíza de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Responsável pela criação do Cadastro Nacional de Adoção, pela comissão de conciliação a acesso à Justiça e pela implantação das varas de violência contra a mulher em todo o país. Escreveu vários livros, entre eles: A vida não é justa, Velhos são os outros e Segredo de justiça. Recebeu em 2010 o Diploma Bertha Lutz.
A escritora e a justiça
Evandro Affonso Ferreira – E quando seus passos não se adaptam de jeito nenhum às probabilidades peregrinas?
Andréa Pachá – Eu volto à Ítaca, do Kaváfis. Ele sempre me lembra que as probabilidades são o próprio caminho. Pensando bem, nem me lembro se já houve um tempo em que meus passos se adaptaram a alguma estrada.
Evandro – Costumo dizer que sou muito afetivo, pegajoso, motivo pelo qual gostaria que Deus fosse palpável. Afinal, procurar Deus é querer apalpar plenitudes?
Andréa – Sou como você. Nasci tátil. Nessa pandemia, tentei lembrar de alguma memória sem abraços e não consegui. O Deus que me constitui é palpável. Não nas plenitudes, mas nos defeitos, no olhar do outro tão precário quanto eu.
Evandro – Procurar a verdade é querer estudar a anatomia do inimaginável, debulhar as cascas do incógnito?
Andréa – Procurar a verdade é um exercício de curiosidade diante da vida. Mesmo sabendo que há inúmeras verdades e inúmeras versões, a procura pela verdade real parece ser uma obstinação humana. Costumo transitar com mais conforto no estudo das verdades circunstanciais. A verdade absoluta – se é que existe – parece um destino para os heróis trágicos.
Evandro – Agora, com o tempo, tenho conseguido polir os avanços com o verniz da parcimônia. E você? Já se afeiçoou aos recuos? É condescendente com os retrocederes?
Andréa – Joel Rufino era um historiador e um amigo muito querido. Todas as vezes em que o procurei, angustiada com os recuos, ele me acenou com a perspectiva histórica. Joel nos deixou muito cedo. Não a tempo de assistir os retrocessos inaceitáveis que temos assistido. Embora compreenda que alguns retrocessos fazem parte da inescapável da vida, não sou condescendente com eles. E espero nunca ser.

Evandro – É possível rastrear lampejos?
Andréa – É preciso estar atento para identificá-los quando eles nos surpreendem. Lampejos são feitos de um tipo de matéria irrastreável. Eles nos escolhem no momento que julgam oportuno.
Evandro – E quando você se sente refém das ciladas da afoiteza? Sim: quando percebe que está transgredindo os preceitos da precaução?
Andréa – Na maioria das vezes, sou contida e cuidadosa, mas quando me deparo com situações que me indignam, não consigo racionalizar a reação e, com frequência, sou excessiva e muitas vezes injusta. Sou capaz de interferir em um bate-boca, em um restaurante, quando vejo um homem sendo grosseiro com a mulher dele, por exemplo.
Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?
Andréa – Não alimento a depressão, mas convivo muito nem com as angústias e com uma certa dose de melancolia. Aceito-as com naturalidade e entendo que, assim como as alegrias e as pequenas felicidades, elas também são transitórias.
Evandro – É possível se precaver contra as próprias contradições?
Andréa – Espero que não. Meu ex-marido dizia que eu me orgulhava dos meus defeitos. Não chego a tanto. Mas o direito de ser contraditório é quase um direito humano fundamental. Como seríamos humanos sem nossas contradições e nossos erros?
Evandro – Você já aprendeu a farejar com antecedência uma rua sem saída?
Andréa –Já antevi a possibilidade de merdas iminentes, mas entre errar com um faro equivocado e apostar na hipótese da saída, tento seguir até o muro. Mesmo que tenha de voltar de marcha à ré, por becos apertados.
Evandro – Vontade, de repente, de voltar às probabilidades peregrinas…
Andréa – Esse tem sido um sofrimento constante, especialmente durante esse ano em que assistimos a vida pelas janelas. Tantas lutas e tantas reações que precisam dos encontros, do movimento das ruas, e a realidade nos aprisionando e nos confrontando com o longo desamparo. Tem sido um tempo de raspar a esperança do tacho. Tem sido um tempo de buscar na ficção, especialmente na literatura, espaços para respirar e transcender. É uma ferramenta de sobrevivência. É uma aposta na pulsão da vida.
Evandro – E quando as mágoas se embrenham nas suas entranhas? Como se livrar dos urros do rancor?
Andréa – Me aninhando nos afetos e no humor. É como consigo não ser pautada pelo ódio que nos arrasta para o pântano que paralisa a alma. Compartilhar as mágoas e poder urrar com quem fala a nossa língua é antídoto para a intolerância e para o arbítrio.
Evandro – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?
Andréa – Depois dos 50 anos, as certezas foram se distanciando de mim. O talvez me apetece e as dúvidas se ampliam. Penso que é um bom projeto para a velhice que vem chegando de mansinho: duvidar muito, para ter ocupação para a cabeça e para o coração.
Fragmentos
Vez em quando sai aos tropeços procurando cadência, compasso nas suas andanças quase sempre lacônicas. Ontem cedo nossa ontológica personagem se arrastou muito devagar, réptil revelhusca, entre os becos sinuosos da própria longevidade.
Jactâncias

Livros de minha autoria
1996 – Bombons Recheados de Cicuta (Paulicéia)
2000 – Grogotó! (Topbooks)
2002 – Araã! (Hedra)
2004 – Erefuê (Editora 34)
2005 – Zaratempô! (Editora 34)
2006 – Catrâmbias! (Editora 34)
2010 – Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record)
2012 – O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record)
2014 – Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record)
2016 – Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record)
2017 – Nunca Houve tanto Fim como Agora (Record)
2018 – Epigramas Recheados de Cicuta – com Juliano Garcia Pessanha ((Sesi Editora)
2019 – Moça Quase-viva Enrodilhada numa Amoreira Quase-morta (Editora Nós)
2019 – (Plaquetes) – Levaram Tudo dele, Inclusive Alguns Pressentimentos, Certos Seres Chuvosos não Facilitam a Própria Estiagem e Anatomia do Inimaginável.
2020 – Ontologias Mínimas (Editora Faria e Silva)
2021 – Rei Revés (Record)
Foto principal
As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos.
As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)
Capa: Marcelo Girard
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