FREDERICO MORIARTY–
No século XIX, Francisco Pinto Ferreira dividiu sua grande fazenda entre seus 3 filhos. Na porteira de entrada havia uma árvore bicentenária, muito alta, troncos largos de tal forma que a propriedade passou a se chamar Pau Grande. O filho caçula que recebeu a herança foi Jacinto Pinto Ferreira. Fica localizada na Serra dos Órgãos. Ali nasceu uma cidadezinha, Pau Grande. No ano em que Hitler chegou ao poder, nasceu em Pau Grande o 2° maior jogador da história, Manoel dos Santos, ou Mané Garrincha. Foi no campinho de futebol da cidade que Mané conheceu Altair, Suíngue e Pincel. Com os 3 amigos que carregou pela curta vida, Mané fundou o timinho “Vai que é Mole”. Talvez tenha sido essa profusão de símbolos fálicos que levaram um jornalista carioca a escrever um lixo de biografia em que, só para exemplificar, perdeu-se páginas e páginas para dar a verdadeira dimensão do cacete de Garrincha.

Foi a bebida. Garrincha possuía dois defeitos de má formatura óssea, um em cada perna. Além disso, havia um arqueamento de 6 centímetros entre as duas pernas. Junte-se a isso a exploração que o atleta sofria do Botafogo. Uma cirurgia corretiva adiou-se por anos, piorando o estado de saúde do “anjo das pernas tortas”, tudo isso para levar Garrincha a fazer amistosos caça-níqueis pelo mundo. Sem esquecer que em muitas partidas ele era massacrado de tanta pancada que levava dos pernas de pau dos gramados. Com ou sem bebida, ninguém teria aguentado tanto. Pinga, só na cabeça dessa elite moralista e branca, como do biógrafo Castro (talvez a depreciação de Garrincha tenha a ver com isso: um eunuco em meio a tantos e grandes paus).

Garrincha tinha uma mente de 8 anos. Um teste “psicotécnico” feito às vésperas da Copa do Mundo de 1958 concluiu que Mané fez 38 pontos de 132. Ele e o menino Pelé não poderiam jogar, deviam sim estar num manicômio. Felizmente, o técnico Vicente Feola desconsiderou a recomendação. E a dupla estreou contra a URSS. Um gol de cada e a arrancada para o primeiro título mundial do Brasil. Após o título apagara-se de vez a imagem de inconsequente e improdutivo de Mané. Nilton Santos teria dito ao doutor behavior: “O senhor pode entender tudo de testes, mas nada de futebol.” E o verdadeiro futebol é isso, o incomensurável, o inverossímil e o impossível. Os grandes craques, os gênios do gramado estão além dos números e razões. São fantasmas da alegria e do prazer popular.

Tudo bem que Garrincha provocava. Foram muitas as partidas em que após um drible ele voltava e encarava o jogador vencido – na contramão do ataque e da vida -, só para driblá-lo novamente. Por pura farra e divertimento. Anti-neoliberal de carteirinha, falsificada é claro. Como num amistoso antes da Copa de 1958 contra a Fiorentina. Garrincha finta um adversário pela direita, dá uma meia-lua e passa pelo segundo, aplica um chapéu no terceiro oponente. Ganha na velocidade do quarto. Humilha o goleiro italiano com um drible seco. Carrega a bola até a linha de campo. Deixa a bola em cima da linha com o pé e a segura com a chuteira. Um quinto zagueiro corre em direção à bola. Garrincha espera e instante em que o italiano vai salvar a pátria, puxa a bola para o lado sutilmente, o defensor adversário passa reto e se estatela nas redes. Com um sorriso de palhaço ele finalmente dá um totozinho na bola e faz o gol. Paulo Machado de Carvalho quase lhe deu um cascudo. Garrincha era o Charles Chaplin da pelota.

Despreparado. Há dezenas de histórias saborosas sobre Garrincha. Uma delas conta que um técnico do Botafogo dava suas explicações para os jogadores. “Vai por aqui, sai por ali, entra naquele lado.” No centro da sala havia uma cadeira. Garrincha então pega a bola, corre em direção ao técnico, dá uma finta e se dirige para a frente da cadeira, toca milimetricamente entre as pernas da moça e sai do outro lado buscar a pelota. Uma jogada de mestre. Noutra, um técnico que não me lembro o nome, até porque em geral estes têm por hábito apagar a luz das estrelas, fazia uma explanação técnica de uma hora. Jogador por jogador, jogada por jogada, lance por lance, minuto a minuto. Uma verdadeira aula da Universidade de Chicago. Terminada a teoria dos jogos macroeconômica, o condutor da equipe pergunta ao grupo dos jogadores se havia ficado alguma dúvida. Garrincha pergunta com simplicidade:
– Já combinou com os adversários?
Mané era pós moderno. Procurava os pontos futuros. Toda reta para ele era uma curva sinuosa. E toda reta para a física será uma curva no infinito. O universo é curvo. Mané era quântico antes da física quântica virar moda. Mané resolvia os problemas do gramado com subjetividade e improviso. Todos os suecos eram João, afinal usavam a mesma camisa do Madureira.

Garrincha não sobreviveria no futebol moderno. Mané fez 286 gols na carreira em quase 600 jogos. Média de quase meio gol por jogo. Não era o velho atacante, não era o centroavante, não era a estrela solitária na seleção nem na estrela solitária botafoguense. Era ponta-direita. Preparava a jogada para os os atacantes concluírem. Se houvesse estatística, seria o rei das assistências. Mesmo assim fez de todo jeito e corpo. Decidiu títulos. Ganhou 2 mundiais, 2 sul-americanos, 2 Rio-SP, 3 cariocas, diversos torneios internacionais. Pela seleção brasileira Garrincha só foi derrotado em 1 partida das 56 que disputou. Curiosamente, para a Hungria, na Copa de 66 e sem o parceiro de 1 década na amarelinha, Pelé. Além dos números há a questão técnica. No Chile, em 1962, Pelé se machuca na primeira rodada. Garrincha muda totalmente o estilo. Assume a condição de líder da equipe. Faz 4 gols e dá 3 assistências nas 4 partidas que restavam. Dos 12 gols que o atleta Brasil fez, Garrincha participou de mais da metade. Incluindo o massacre contra a Inglaterra que trouxe manchetes no dia seguinte:
¿Garrincha, de que planeta vienes?
Foi artilheiro e eleito o melhor jogador da Copa.
Garrincha foi homem de muitas mulheres. As lendas dizem que teve tantos filhos quantos gols fez. Moacir conta a estratégia de Mané na Suécia. Quando via um sorriso na face das loiras escandinavas, ele sacava um caderninho, desenhava um coração. Mostrava à moça e se esta sorrise, Mané acrescentava uma cama embaixo do coração. O zagueiro garante que o amigo encheu o caderninho. Mas foi em 1962 que ele conheceu Elza Soares, sua grande paixão. Garrincha era casado e ela já era uma cantora famosa. O relacionamento dos 2 foi considerado um escândalo. A casa dela foi apedrejada. Eles só se casaram em 66. As posições firmes de Elza, a defesa intransigente que ela fazia com razão do anjo das pernas tortas, a oposição política levaram a casa do casal ser metralhada pela ditadura. Elza e Mané fogem para a Itália. Elza cuidou do ocaso da carreira, do alcoolismo, das cirurgias que nem CBD nem Botafogo quiseram pagar. Foi escorraçada pela imprensa brasileira, vilipendiada por muitos. Ficou com Mané até 1982, seis meses depois ele morreu de cirrose. Passarinho ferido e solitário. Ontem, 20 de janeiro, 39 anos depois, Elza faleceu. No mesmo dia em que Garrincha morreu. O menino de Pau Grande desceu buscá-la.
Garrincha foi gigante. Garrincha foi, junto a Pelé, um dos maiores craques de toda a história. Ele sempre estará na lista dos 10 maiores craques do futebol mundial. Cabe perguntar: quem foi maior? Há sentido em comparar Mozart e Beethoven? Estilos diferentes e genialidades únicas. Pelé foi um jogador vertical. Partia em direção ao gol em linha reta. Pelé era como um imenso tobogã inclinado. A gente desce rápido e furiosamente e atinge em segundos a linha de chegada. Garrincha era um ponta direita em meandros. Suas jogadas eram uma montanha russa. Subidas íngremes, quedas bruscas e acentuadas, curvas fechadas, despenhadeiros, loopings. Uma sinuosidade que chegava ao mesmo objetivo. E não é a montanha russa muito mais emocionante e dramática e divertida para quem assiste? Mais ainda para quem está descendo pelos seus trilhos. Garrincha é nossa vida.
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